25 outubro, 2016

Comentário sobre a mística da revolução afroculturalista

Em seu mais famoso retrato, Huey Newton ressignifica símbolos tribais como ameaça de uma revolução futura

Culturalistas e revolucionários constituíram duas correntes ideológicas antagônicas no movimento negro americano da segunda metade dos anos 60. Enquanto os culturalistas acreditavam que tínhamos de pregar um retorno simbólico a uma África idealizada, incorporando "africanismos" à lógica capitalista, movimentos revolucionários como os Panteras Negras e o Move achavam que não existia emancipação dentro do capitalismo. Para eles, o processo de criar uma estética pseudo-africana não faria mais do que substituir os opressores brancos por opressores pretos. Eu, que sou mais fã de Malcolm X e Angela Davis que de Beyoncé e Kanye West, não acho que o culturalismo possa levar à "implosão da Casa Grande".

Isso caberia à revolução, que perdeu a luta pelo coração dos negros americanos. Símbolo dessa derrota é o fato de que Beyoncé, ícone culturalista por excelência, apareceu no Super Bowl fazendo uma ode ao capital fantasiada de Pantera Negra. Huey Newton se revirou no túmulo com essa apresentação, tenho certeza. Porque ela significou a incorporação da estética revolucionária pela ética culturalista. Um golpe duro no pensamento radical.

O culturalismo, como faceta "afrofriendly" do mau e velho capitalismo, devora a dimensão utópica da revolução e vomita apenas o "visual" Pantera Negra, sem nenhuma força mobilizadora. Transforma o punho cerrado em um Che Guevara com orelhas de Mickey. O tradição radical do pensamento afroamericano ensina que o racismo é um subproduto indispensável do capitalismo pós-escravista. Então, ao esvaziar a jaqueta preta de sentido, Beyoncé X quebrou uma fronteira simbólica para a dominação do culturalismo sobre a utopia de extinção do racismo.

O intelectual negro W.E.B Dubois já tinha constatado, antes mesmo de existirem culturalistas, que o reformismo negro prestaria um serviço ao capitalismo e, consequentemente, à ideologia racista. Insisto: é um erro achar que o culturalismo possa levar à implosão da Casa Grande. Se é assim, como se explica o fato de que a Casa Grande não só não implodiu como se sofisticou no país do afroculturalismo?

Não podemos esquecer que o "presidente negro" executou extra-judicialmente mais não-brancos ao redor do mundo do que qualquer branco que ocupou a Casa Gran... digo, Branca. O Estado comandado por Obama mata mais negros do que matava com Bush. Mas isso passa despercebido graças à lógica culturalista, que confunde um símbolo estético individual com um progresso social real, impedindo que esse avanço coletivo de fato aconteça. No Brasil, a gente também teve esse fenômeno. O fato de o movimento negro de São Paulo ter apoiado em massa o Celso Pitta foi perfeitamente coerente com a lógica culturalista.

O que não é coerente com a lógica culturalista é achar que, por meio dela, se possa chegar a um fim anticulturalista. Se implodir a Casa Grande é mesmo o que a gente quer, nossa cara é começar a pensar de verdade em como afundar de vez o capitalismo. Não me parece que seja se integrando a ele, ficando rico.

Texto escrito em 1º de abril de 2016
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Estado francês condecora o terrorismo e isso tem a ver com a Petrobras

 Hollande, praticamente no lavabo do Eliseu, entrega a Legion d'Honeur ao príncipe Saoud

É muito louco como o mundo das elites é pequenininho. Lembro da minha velha avó dizer que quem sai na porrada na rua é pobre; rico negocia a portas fechadas e sempre se entende. Sábia, negra e pobre Dona Zica. No Senado brasileiro, "esquerda" e direita se dão as mãos e entregam o patrimônio nacional enquanto a militância se arrebenta na rua pra defender a ordem democrática. E a gente ainda corre o risco de virar terrorista por uma lei proposta pelo "nosso" governo.

Mas o Brasil ainda é um tijolo intermediário da pirâmide global. Conforme se aproxima do topo, o cimento da solidariedade elitista tem mais liga. Se liga o que aconteceu aqui na França esses dias: ninguém viu, mas na última sexta-feira, o presidente "socialista" François Hollande - aquele mesmo que quer inscrever o Estado de Exceção na Constituição - condecorou o príncipe saudita Mohammed bin Nayef bin Abdelaziz Al Saoud com a Legião da Honra, a principal medalha do Estado francês. Foi tão na encolha que a imprensa daqui ficou sabendo pela agência de notícias saudita SPA. Todo mundo ligou pro Palácio do Eliseu e veio uma confirmação meio desbaratinada: "a gente dá isso aí pra todo mundo", respondeu a entourage do Hollande em francês melhor que o meu.

Agora, por que a condecoração causa constrangimento, se somos todos "potes" (camaradas)? Se, felizes e contentes, bombardeamos juntos o Estado Islâmico na Síria e assinamos contratos bilionários de vendas de armamentos? Por que o constrangimento, se a Arábia Saudita é idônea ao ponto de presidir o Conselho de Direitos Humanos da ONU? É que a Arábia Saudita promove e financia abertamente a internacionalização do fundamentalismo islâmico. E isso pega meio mal.

Eles dizem com todas as letras que quem não é muçulmano sunita tem que morrer. E, como falar gíria bem até papagaio aprende, eles colocam o plano pra funcionar, financiando a petrodólares a internacionalização da ideologia fundamentalista wahabista, base da jihad radical. Em casa, os sauditas seguem a mesma cartilha do Estado Islâmico: roubo, ranca a mão fora; pra ofensa ao rei, heresia e homossexualidade, a pena é decapitação; mulher adúltera morre apedrejada; um gorozinho é punido com 200 chibatadas em praça pública.

Isso se o infrator não for da família real, porque o príncipe Majed al Saud não precisou de mais do que umas poucas horas para infringir todas as disposições da sharia e tá de boa. O Daily Mail denunciou que, em setembro do ano passado, ele promoveu uma festa regada a prostitutas, álcool e cocaína em Beverly Hills, que incluiu sexo gay, cárcere privado e ameaça de morte contra três funcionárias da mansão onde ele estava, que se recusaram a prestar-lhe favores sexuais.

Mas o fato de eles curtirem uma sacanagem misógina, não darem a mínima para os direitos humanos e financiarem terroristas não tem tanta importância quanto o peso político-econômico de seus petrodólares. A Arábia Saudita tem tanto petróleo que consegue dar o tom do mercado energético global. É isso que faz com que a CIA atrele a proteção da família real saudita à segurança dos próprios Estados Unidos.

Aliás, a atual relação entre os aliados históricos Riad e Washington talvez seja o melhor exemplo do amigos, amigos; negócios amigos que impera no neoliberalismo transnacional. Eles vivem em uma simbiose esquisita: os sauditas têm medo que os americanos deixem o Oriente Médio e transformem a China em seu novo foco de interesse estratégico. Esse afastamento abriria espaço para o Irã xiita, principal inimigo da petromonarquia sunita. O petróleo a baixo custo impede a exploração comercial em larga escala do gás de xisto e obriga os Estados Unidos a continuarem sentados no elefante branco da guerra ao terror, uma briga ineficaz e já pouco rentável, resquício da década passada.

Paradoxalmente, pros Estados Unidos, é muito interessante ter um aliado capaz de controlar o mercado internacional de petróleo e calar a boca de inimigos na guerra energética que se anuncia, como Venezuela e Brasil. O preço historicamente baixo do petróleo é um tiro de drone na Petrobras e na PDVSA. Sorte dos EUA que a gente é gente é boa e não quer ser inimigo de ninguém: o governo Dilma já articulou com o PSDB a venda do pré-sal. Optamos por declarar W.O., num momento em que o preço do petróleo está artificialmente baixo, justamente para que a gente declare W.O. E tem fulano que acha que a crise na Petrobras é um problema interno. Falô. Petróleo? Problema interno?! Vai dizer também que foi o PT que inventou a corrupção e o Lula, a luta de classes?

A luta de classes é tão radical hoje quanto já foi no passado. A diferença é que a globalização ampliou as distâncias entre pobres e encurtou entre os ricos. É por isso que a França, defensora dos direitos humanos, das liberdades individuais, do direito dos homossexuais e da integração dos povos, festeja um ano dos atentados contra o Charlie Hebdo condecorando a monarquia que inventou - e sustenta por todos os meios possíveis - a doutrina wahabista, que forma todos os terroristas islâmicos.

Num jogo de elites neoliberais mui amigas, o governo só tá ali para servir de boi de piranha do interesse privado. O presidente absorve o impacto popular do injustificável, deixando o empresariado, invisível e anônimo, livre para barganhar vidas humanas. E a Arábia Saudita fica a vontade para continuar a ostentar o status de melhor mercado no Oriente Médio para os equipamentos militares ocidentais. Ainda que frequentemente, as armas vão parar na mão de grupos como a frente Al-Nusra, braço da Al-Qaeda na Síria, e até do próprio Estado Islâmico, o importante é fazer a indústria girar. Então, se a arma francesa terminar matando um francês, e daí? Com certeza, bala nenhuma vai atravessar a cabeça de um rico. Afinal, como dizia minha velha avó, só pobre briga mesmo.

Texto publicado originalmente em 9 de março de 2016
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24 outubro, 2016

O que pensava Flávio Renegado quando lançou seu primeiro disco

Renegado, em foto de Bárbara Dutra

"Nunca tive muito contato com meu pai", conta o rapper Renegado, constatando em si próprio a realidade de milhões de crianças de periferia. "Nas vezes que ele aparecia, sempre aparecia malandrão, né? Chapado e com o Bezerra da Silva debaixo do braço". A mãe, que "limpou muito chão de playboy" para criar os filhos, era solteira aos 21 anos e já alimentava duas bocas. Ao seu redor, surgiam exemplos e mais exemplos do que há de pior: bêbados, bandidos, traficantes, armas. O roteiro é a tragédia clássica do negro pobre. Mas, aos 27 anos, esse mineiro da comunidade Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte, contraria as estatísticas: "Não tenho nenhuma perfuração de bala no corpo, nenhuma cadeia e tenho uma perspectiva de vida palpável na música", despeja o rapper.

Perspectiva é modéstia e rapper é pouco para defini-lo. Com sua mistura indiscriminada de samba, reggae, ragga, MPB e o que mais lhe vier à cabeça, Renegado é hoje a maior revelação da música de Minas: ganhou dois prêmios Hutuz em 2008 (revelação e melhor site), lançou um disco independente (Do Oiapoque a Nova York) e outro demo, gravou em Cuba com Cubanito e Alayo, virou garoto-propaganda do programa Vozes do Morro do Governo Estadual, flertou com a MPB de Aline Calixto e já é figurinha carimbada dentro do movimento hip hop. Por fora, é ativista social e presidente da ONG Negros da Unidade Consciente.

"Eu não tenho gravadora, não tenho grandes investidores, não tenho nada do tipo. Tenho é muita vontade de trabalhar e pessoas que acreditam no mesmo sonho que eu". Apoiado pelos "parceiros de caminhada", Renegado quer ir além - e não só na música. O que ele deseja mesmo é um país mais justo, mais igualitário e com mais oportunidades. E o rap é um dos caminhos para isso porque é a "música da verdade. Pra quem tem verdade a ser transmitida, ele é um mecanismo de libertação". Se o papo lhe parece sério demais até aqui, meio sisudo até, é porque você não conhece o cara ainda: Renegado é todo sorridente. "A gente escuta: 'Tem que ser homem mau pra vencer essa guerra'. Muito pelo contrário, mau é quem nos oprimiu até agora. Nós estamos aqui mostrando que não queremos viver em guerra; queremos alcançar a paz". Por isso, ele garante que sua música não carrega o peso de quem mora na periferia, mas a esperança de mudar. E tudo isso sem perder a ginga, o suíngue e o flow, como ele gosta de dizer. Com vocês, Renegado:


Reprodução da capa do CD "Do Oiapoque a Nova York"

Afroências: Você prefere ser chamado de rapper, cantor ou prefere não ser chamado de nada?
Renegado: (Risos) Mano, acho que eu sou músico, tá ligado? E, acima de tudo, rap é a música que eu escolhi cantar. Hoje no meu trabalho, o rap é uma opção de música. Não é a única alternativa; meu trabalho dialoga o tempo inteiro com várias vertentes da música. Busco trazer isso pra dentro do rap. Eu me identifico muito com o rap porque ele é a música da verdade. Pra quem tem verdade a ser transmitida, ele é um mecanismo de libertação.

Renegado era apelido na quebrada ou é nome artístico?
Renegado: A princípio, foi um apelido que eu ganhei - eu não curtia muito, não. Minha mãe sempre foi muito sistemática com a nossa criação em casa, ela nunca gostou muito desse esquema de ter vulgo. Depois de um tempo, comecei a refletir melhor sobre esse nome e percebi que várias pessoas da quebrada são renegadas: às vezes, não temos condição de ter uma casa legal, de ter saneamento básico, de ter uma condição de vida digna de dizer que somos cidadãos, tá ligado? São bens comuns de sobrevivência que foram negados e re-negados. Por isso que eu adotei esse nome; para poder falar que, mesmo com todo o descaso e toda a revolta, a opção que nós temos não é portar arma como forma de vida. E é uma palavra forte, né, mano?

E ela tem o "nego" no meio, né? Todo mundo fala negação, mas ninguém fala brancação...
Renegado: É... Negação, mas não brancação (risos). Boa! Essa daí eu não tinha pensado, essa foi ótima. E é louco porque, ao mesmo tempo em que é uma palavra que traz essa vibe de ser algo negativo...

Outra palavra com nego...
Renegado: Tem várias! Se a gente for levantar assim, tipo... Denegrir, mano. Denegrir é f... Vamos denegrir tudo pra ver se fica um pouquinho mais preto. Mas então, essa parada do nome: também tem uma força, tem uma musicalidade dentro dele, que me atraiu muito.


"Bênção", de Renegado

A Dona Regina (mãe) acabou aceitando o vulgo?
Renegado: Ah, hoje ela já fala. Quando ela atende o telefone lá em casa, ela diz: "Aqui quem está falando é a mãe do Renegado!" (risos). Ela já se identifica. E a parada é a seguinte: nessa sociedade em que a gente vive, todo mundo tem que ser bonzinho o tempo inteiro, tem que ser heroi, cara. A gente tem que trabalhar um pouco a questão do anti-heroi, da contracultura... Até pra gente poder refletir um pouco, sair do lugar. Se a gente fica aceitando tudo o que está pronto e acabado, a gente não muda, né? Vamos ver se os renegados acordam aí pra poder escrever a própria história, né, irmão? Porque o tempo inteiro fica essa parada de gente dizer que nós somos descendentes de escravos... Meu ancestral não foi escravo, ele foi escravizado; é diferente.

Ninguém nasce escravo, né?
Renegado: Ninguém nasce escravo, como ninguém nasce Madre Tereza de Calcutá e ninguém nasce Fernandinho Beiramar, tá ligado? É tudo uma questão de sensibilidade e referencial. Nosso referencial, o tempo inteiro, é o cara da quebrada portando fuzil, o pai alcoólatra. Esses são os referenciais do nosso povo. Então, a gente tem que mudar um pouco essa perspectiva. Quando um moleque na quebrada me vê fazendo um comercial ou um show, ele fala: "Pô, aquele mano da quebrada está lá na televisão". E fala pra mim: "Continua aí, o trabalho tá legal". Ele começa a ter ourtas referências sendo construídas.

Você mistura samba, rap, reggae, tem um site muito louco, de alta tecnologia, não tem qualquer barreira. De onde vem essa força pra desbravar culturas?
Renegado: A primeira coisa que a gente tem que ter é acreditar que sempre é possível sonhar. Se a gente acha que tudo é difícil... Tudo é difícil mesmo, mas se a gente entrar no jogo achando que já perdeu, melhor nem entrar em campo. Eu não tenho gravadora, não tenho grandes investidores, não tenho nada do tipo. Tenho é muita vontade de trabalhar e pessoas que acreditam no mesmo sonho que eu. Então, eu vou colhendo parceiros no decorrer da caminhada e, com isso, o trabalho vai se construindo e se consolidando também. Nessas, tivemos em 2008 a felicidade de ganhar o prêmio de melhor site de hip hop no Hutuz... Também ganhei o prêmio de Rapper Revelação em 2008. Então, saí de Belo Horizonte, ninguém me conhecia e já pude alcançar outro patamar. Hoje, nós estamos circulando o país, fazendo show em Brasília, Goiânia, Cuiabá, São Paulo, Rio, Campinas... O trabalho está se sustentando. E o tempo inteiro, a gente recebe palavras de "desincentivo": "Isso é difícil, isso não dá...". Esse pensamento nós temos que mudar. Eu não construí nenhuma fronteira, você construiu?

Não.
Renegado: Então, mano... Minha palavra de ordem é quebrar fronteiras e estabelecer diálogos.

Como foi seu primeiro contato com a música?
Renegado: Meu primeiro contato com cultura de uma forma geral foi quando eu entrei num grupo de capoeira lá na minha comunidade. Fiquei nesse grupo durante cinco anos. Quando eu tinha 13 anos de idade, eu estava na casa de um amigo e estávamos nós dois ouvindo uma rádio comunitária que tocou "Fim de semana no parque", dos Racionais MCs; e "Corpo fechado", de Thaíde e DJ Hum, na sequência. Aí eu falei: "É essa parada que eu quero fazer". Me identifiquei na hora. Mas eu sempre tive contato com a música. Minha mãe ouvia aquelas rádios que tocam música romântica no final da noite. Era Roberto Carlos, Tim Maia... E gravava num gravador que a gente tinha em casa. Meu pai sempre foi muito ausente, nunca tive muito contato com ele, mas nas vezes que ele aparecia, sempre aparecia malandrão, né? Chapado e com o Bezerra da Silva debaixo do braço (meio riso). Essas coisas que foram me pautando pra que, quando eu tive oportunidade de conhecer o rap, eu pudesse aplicar tudo isso dentro da minha música.

Então sua formação foi pelo rádio?
Renegado: Sim. A vida inteira, né, mano? E hoje o meu som toca na rádio também. Então, eu tô sendo referencial pra outros moleques também.

E como é que é essa história de Nova York?
Renegado: Quando eu fui fazer o disco, eu quis trazer a questão da mistura e do diálogo pra dentro do trabalho. Pô, nós temos aqui um rico histórico musical nacional e, naquele momento, o rap nacional ainda não tinha aprendido a se tornar um rap brasileiro. Eu resolvi fazer mistura; e peguei a referência do rap como a música pop do mundo - Nova York como pilar dessa globalização. Eu pensei: "Vou falar do Brasil aos Estados Unidos"; e escolhi esse nome, mais brasileiro e mais world music possível: Do Oiapoque a Nova York.


Conexão Alto Vera Cruz/Havana, no Estúdio Show Livre


Entre Oiapoque e Nova York tem Havana, né (uma das músicas de Renegado, chamada Conexão Alto Vera Cruz/Havana, tem participação de músicos cubanos)?
Renegado: Tem América Latina inteira, irmão.

Falo especificamente da música Conexão Alto Vera Cruz/Havana: começa com batida de terreiro, cita o candomblé, cita a santeria. Quer dizer, é uma música panafricanista. A mensagem que ela me passa é que todos os negros são filhos de uma mesma mãe África.
Renegado: Sim. Irmão, eu acho que a África é o grande berço de tudo, tá ligado? Quando eu comecei a produzir o disco, ouvi muita coisa do Senegal, do Quênia. Queria uma referência de por onde transitar com o trabalho. Quando a gente busca nossas raízes, a gente tem perspectiva de enxergar o futuro. Quando eu entendi essa parada, falei: "Opa, 'pera aí'. Vamos lá na África, vamos em Nova York, vamos entrar em conexão com tudo que existe". Isso abriu o diálogo. E raiz é isso. Fiz essa música em 2004, quando fui a Cuba. E ela continua atual. Acho que se a gente ouvir daqui a cinco anos, ela vai continuar atual.

Como foi a viagem para Cuba?
Renegado: Ficamos 15 dias lá. Nossa, mano, é uma ilha mágica. Você vê o povo sobrevivendo em condições precárias, por causa do embargo e da própria ditadura. Claro que a revolução é bacana, mas ditadura tem suas desvantagens. Mas o povo é igual ao povo brasileiro! Eu fiquei em Vedado (bairro de Havana). Eu andava Vedado, achei que estava no Alto Vera Cruz. Tranquilo: povo rindo, a vibe boa, mulheres bonitas, andando com a auto-estima em alta. Que da hora aquele lugar! Lá não tem essa questão de preconceito racial igual ao que tem aqui: o pessoal lá é cubano e tá tudo certo. Não tem essa vibe, tudo é energia; tranquilidade.

Por falar em preconceito racial, o candomblé tem sido muito judiado, principalmente por algumas igrejas evangélicas que têm, inclusive, convertido muitos negros. Você é um cara que fala livremente do candomblé na sua música. Esse é um caminho pra salvar essa parte cultura negra de tanto preconceito?
Renegado: A base de tudo no mundo é a educação. Enquanto a educação no nosso país for ineficiente, nós vamos ter esse retrocesso no sentido de respeitar outras etnias, outras crenças e os outros indivíduos da nossa sociedade. O nosso povo aceita essa coisa das outras religiões serem impostas porque nossa história foi queimada. Ela não foi estudada quando a gente era criança e continua não sendo estudada agora, com a gente um pouco maior. Hoje, nós temos construções que ajudam a melhorar esse processo, como a lei que (obriga) o estudo da história africana nas escolas. Então, daqui a pouco, nós vamos ter uma outra mentalidade sendo construída em torno das religiões de matriz africana - o povo vai começar a entender a nossa história. Porque o povo que não tem história não tem auto-estima, não tem conhecimento, não tem perspectiva. É disso que nosso povo está precisando: conhecer quem são nossos ancestrais e entender para onde o mundo está nos guiando. Acho que aí a gente vai ter a tranquilidade para respeitar a religião e a cultura do outro sem precisar impor a nossa. A fase de colonização já passou, mas a gente ainda vive ela quando liga a televisão ou quando vai a um culto religioso. Mas com o tempo, isso tudo vai ser vencido.

Foi com essa ideia na cabeça que você criou a ONG Negros da Unidade Consciente?
Renegado: Foi com a ideia de ter perspectiva de vida e atuação na comunidade... Tudo isso sem perder o flow, né (risos)? Porque isso nós temos que ter o tempo inteiro: nossa ginga e o nosso suíngue.

Por falar em não perder o flow, você é um rapper que não tem vergonha de sorrir - quem vê a capa do seu disco demo não fala que é rap. Cara feia no rap é coisa do passado?
Renegado: Não vou nem dizer que é coisa do passado. Só acho que o rap está passando por uma fase de transição. A gente escuta: "Tem que lutar, tem que ser homem mau pra vencer essa guerra". Muito pelo contrário, mau é quem nos oprimiu até agora. Nós estamos aqui mostrando que não queremos viver em guerra; queremos alcançar a paz. Por isso, mano, a gente tem que ter sorriso, tem que ter verdade, tem que ter tranquilidade pra poder guiar esse momento. Acho que a minha música não tem o peso de quem mora na periferia; ela tem é a perspectiva de melhora pra quem mora na periferia. Se a gente ficar na bad trip o tempo inteiro, é complicado demais. Nosso povo é batalhador, é guerreiro, mas se diverte também: faz música boa, joga muito futebol, faz samba, tá ligado? É nossa história, é nossa raiz. Não tem como a gente negar isso daí.

Você já teve bastante contato com a mídia?
Renegado: Tive sim. E vou te falar que o meu trabalho é muito bem aceito pela mídia, principalmente a impressa. O pessoal tem uma atenção muito grande, observa e respeita muito. Eu sou muito feliz por isso. Mas eu acho que ainda é pouco. Temos que ter quatro Manos & Minas (programa da TV Cultura), temos que ter vários jornais e várias revistas para divulgar os nossos feitos. E acho que a gente tem que ocupar mesmo a mídia porque são mais de 60 milhões de negros que assistem a TV no domingo à tarde, tá ligado? A gente tem que estar lá pro cara poder olhar e falar: "Opa, olha a gente lá!".


Renegado canta "Do Oiapoque a Nova York" no Manos & Minas
Então dá para fazer da mídia uma aliada?
Renegado: Eu não diria aliada. A mídia é uma ferramenta que a gente precisa aprender a utilizar, como utiliza hoje Twitter, Facebook, Orkut, email.

Falando especificamente desse show de sexta-feira, o que você vai apresentar para o público de São Paulo?
Renegado: Vou apresentar o repertório do disco, com algumas músicas inéditas também e algumas releituras - tô começando a trazer isso pra dentro do universo do rap. Acho que está na hora de a gente estabelecer um diálogo maior com a música brasileira. Então, vou cantar Tim Maia, Chico Buarque e vou ter essa participação maravilhosa do Marcelinho da Lua.

Quando você era moleque lá no Alto Vera Cruz, qual era seu maior sonho?
Renegado: (Silêncio) Essa é boa (risos). Eu ainda sonho demais quando eu estou lá no Alto Vera Cruz, tá ligado? Acho que ali eu sou moleque. Mas uma coisa que eu sempre quis fazer foi transformar aquela comunidade de verdade. Hoje a gente já conseguiu várias obras de orçamento participativo, estamos abrindo as ruas na comunidade, canalizando; estamos mudando o cotidiano das pessoas que estão lá. O meu sonho era ser referência na minha comunidade. Acho que até comecei a extrapolar, começamos a quebrar as fronteiras do Alto Vera Cruz e ir pra outras - pra cidade, pro estado...

Pra BH, pro Brasil, pro Oiapoque, pra Nova York?
Renegado: (Risos) Por exemplo, né, mano? A próxima tentativa é isso. Acho que é isso, bicho, acho que a cada dia o sonho se renova. E isso é o mais importante: a gente sempre tem que sonhar para alcançar um outro sonho.
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"Segurança virou instrumento de propaganda", diz Marcelo Freixo

Marcelo Freixo concede entrevista na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2015. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O número de homicídios no estado do Rio de Janeiro cresceu 16% entre os anos de 2012 e 2013. Embora alarmante, o dado divulgado pelo ISP (Instituto de Segurança Pública) nesta terça-feira (18 de março de 2014) é apenas mais um entre vários indícios de uma crise generalizada no sistema carioca de segurança. São tantos e tão sintomáticos os casos extremos de violência que é até difícil elencá-los. No início de fevereiro, o Aterro do Flamengo viu uma reconstituição grotesca dos pelourinhos de outrora: um negro menor de idade foi subitamente julgado como ladrão, amarrado nu a um poste e espancado por justiceiros.

Antes disso, em dezembro, um morador de rua que carregava uma garrafa de água sanitária e outra de desinfetante foi preso e transformado em bode expiatório das manifestações da metade do ano passado. É até agora o único condenado pelos supostos excessos dos movimentos. Detalhe observado pelo deputado estadual e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Marcelo Freixo (PSOL): Rafael Vieira "sequer sabia quem era o Governador do Rio de Janeiro".

No último sábado, quatrocentos policiais - cem deles do Batalhão de Operações Especiais, o BOPE - foram deslocados para áreas sensíveis de favelas "pacificadas" na Zona Norte do Rio de Janeiro. O reforço é uma resposta estatal aos mais recentes ataques às unidades de polícia pacificadora. Desde a instalação das UPPs, em 2008, 11 policiais que integravam essas unidades foram assassinados. Ao falar com a imprensa durante a reocupação de favelas no Complexo do Alemão e na Penha, o coronel Frederico Caldas abandonou a lógica da polícia comunitária e declarou: "a resposta será extremamente dura".

Miopia e daltonismo
O problema é que as respostas "extremamente duras" da Polícia Militar são seletivamente míopes. Haja vista o registro inicial do assassinato de Cláudia Silva Ferreira, baleada por PMs na zona norte do Rio e arrastada por uma viatura policial por 350 metros no último fim de semana. No primeiro relatório sobre a morte, os militares fizeram um "auto de resistência", segundo o qual a vítima teria reagido violentamente a ordem policial. Cláudia era servente e não trazia nada além de um copo de café nas mãos. Curiosamente, a grande maioria das vítimas letais da violência policial é registrada sob os tais autos de resistência. Se eles são todos verdadeiros, só em 2007, 1330 pessoas reagiram violentamente à polícia no Estado do Rio, informa relatório do ISP.

Embora sejam míopes, as respostas policiais não são daltônicas, dada a quantidade de negros enquadrados e presos de forma arbitrária na cidade. Até o ator da Globo Vinicius Romão foi vítima da prisão provisória, uma medida restritiva de liberdade que, teoricamente, só deveria ser aplicada quando o acusado oferece perigo grave. Ou melhor, quando ameaça o princípio de "garantia da ordem pública" - um entre muitos resquícios da Ditadura Militar em nosso código penal - que, na prática, outorga aos magistrados uma premissa subjetiva de execução da pena. Romão, que é negro, passou 16 dias atrás das grades. Mas a libertação rápida não é a regra para a maior parte dos presos provisórios, que compõem quase 40% da população carcerária carioca.

Apesar do anacronismo do princípio, em 2011, os juízes optaram pela prisão provisória em 79% dos casos de detenção em flagrante, independentemente da periculosidade dos detidos ou mesmo da gravidade dos crimes. Os dados são do estudo "Usos e abusos da prisão provisória no Rio de Janeiro", realizado pela Associação pela Reforma Prisional (ARP), em parceria com o CESEC, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes.
É neste cenário caótico que trabalha Marcelo Freixo. Uma tarefa árdua, já que acumulam-se sobre a mesa do deputado todos estes casos que, em conjunto, mostram o quão doente está a Segurança Pública no Estado. Leia a seguir entrevista com Freixo.

Gabriel Rocha GasparDeputado, aqui na França, desde que foram instaladas, as UPPs foram frequentemente mostradas na imprensa como uma solução milagrosa para a segurança pública no Rio. Seis anos depois da primeira UPP, este tipo de unidade já foi alvo de vários ataques. As UPPs, do jeito que elas foram pensadas e instaladas, constituem um sistema intrinsecamente defeituoso?
 Marcelo Freixo - Olha, primeiro que não existe uma solução mágica para a segurança pública nem do Rio de Janeiro nem de nenhum outro lugar. É falsa a polêmica de quem é favorável ou contra as UPPs como se o debate das UPPs resumisse todos os debates de segurança pública no Rio de Janeiro. Nós não temos uma nova polícia, não temos um outro treinamento, não temos uma vigilância sobre a polícia, não temos ouvidorias, não temos corregedorias eficientes, os salários são absolutamente aviltantes, não há um treinamento novo, adequado e preparado para uma outra lógica de segurança pública. Então, nós temos problemas estruturais que não foram tocados, sequer tocados. Então, evidentemente, não há solução mágica para a segurança pública.

O problema é que a segurança virou já há bastante tempo, não só neste governo, um instrumento de propaganda. Então, nas áreas em que você consegue fazer propaganda, ótimo. As áreas em que você não consegue fazer propaganda, você esquece e torna invisíveis. É o caso da área do 9° Batalhão (de Polícia Militar, em Rocha Miranda), em que tivemos um episódio neste domingo dos mais absurdos, onde uma mulher foi arrastada por um carro da polícia pendurada pela roupa na caçamba. Não sei nem se vocês já tiveram acesso a essa imagem, mas é uma imagem absurda de uma mulher morta pela polícia, colocada na caçamba. Ela cai, fica presa pela roupa e é arrastada pelas ruas na área do 9° Batalhão. É uma área que está muito longe de qualquer propaganda de segurança pública. Uma área onde nós tivemos 18 autos de resistência, 18 pessoas mortas pela polícia no ano passado. Isso dá mais de uma pessoa por mês. (Uma área) onde os roubos aumentaram de 6,9 mil para 8.146. O homicídio saiu de 143 para 173, só nessa área. Uma área de disputa de milícia e tráfico...

O que se espera? Que todo o Rio de Janeiro tenha uma UPP? Que cada favela do Rio de Janeiro, das mais de mil, tenha uma UPP? Um Estado Militar? Isso não é factível. Então, o debate da Segurança Pública é muito mais profundo do que o debate das UPPs. O debate das UPPs em si merece todo um acompanhamento, todo um conjunto de críticas. Não pode ser visto como algo favorável ou contra, (como) se isso resumisse todo o debate.

No fim do ano passado, você entrevistou o Rafael Braga Vieira, primeiro condenado pelas manifestações da metade do ano...
Primeiro e único.

E único ainda. E tenho visto também sua militância com relação aos casos de racismo no Judiciário, inclusive dentro da Comissão dos Direitos Humanos que você preside. O racismo é exceção ou modus operandi no Judiciário carioca? Como isso se relaciona com a questão da segurança pública de modo geral?
O Brasil passou muitos anos, alguns séculos, com a escravidão. Nós fomos escravocratas (durante) toda a colônia, todo o império e não resolvemos a escravidão na República. Então, as nossas instituições estão absolutamente carregadas por um olhar racista. Isso não só o Judiciário, mas o Executivo, o Legislativo, o Ministério Público, as nossas polícias. O racismo não aparece no Brasil apenas numa declaração racista ou num preconceito ou num estádio de futebol. O racismo está inserido no dia-a-dia das instituições.

Basta a gente olhar para o sistema prisional do Brasil que a gente constata o que significa. Basta você ver a forma de abordagem nas ruas, a lógica da segurança pública, que continua sendo a busca do inimigo, do elemento suspeito. A questão social no Brasil é muito marcante. O Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. Ela se mistura de uma maneira muito contundente com a questão racial. A gente não consegue separar, na história do Brasil, a questão social da questão racial.
Nós tivemos agora um episódio muito grave de um rapaz confundido com um assaltante, que foi detido. O azar é que ele era ator, da Rede Globo inclusive, tinha feito uma novela na Rede Globo, e a única razão de ele não ter sido investigado - porque ele foi reconhecido pela pessoa que assaltou - é porque ele era negro. E isso aconteceu na Zona Norte do Rio de Janeiro. Então, evidentemente a nossa Justiça Criminal, assim como diversos outros poderes, tem - e muito - no seu dia-a-dia, na sua estrutura, uma prática racista.

Enquanto o Rafael Vieira foi condenado...
O Rafael continua preso, estivemos com ele ontem (17/03), por coincidência. Ontem, nós levamos a mãe do Rafael para visitá-lo. Foi a primeira vez que a mãe visitou, porque é uma pessoa muito pobre, que não tem sequer o dinheiro da passagem para poder ir ao presídio. Ontem, nós conseguimos a viabilidade de ela ir com alguma frequência lá, a gente conseguiu a transferência do Rafael para um outro presídio, onde ele vai ter a chance de fazer algum curso profissionalizante, que é o que ele quer.
Enfim, a gente acompanha o caso dele muito de perto, mas é um absurdo porque o Rafael evidentemente não tem qualquer possibilidade de ser um manifestante, não tem nenhuma chance de ele ter cometido o crime pelo qual ele foi acusado, julgado e condenado. Enfim, as provas são absolutamente frágeis, inclusive contrariando a própria perícia, que diz que o material encontrado com ele não era um material inflamável. Mas é isso: é o único manifestante de todas as manifestações que ocorreram no Brasil condenado. Morador de rua, que sequer sabia quem era o governador do Rio de Janeiro.

E ele foi condenado a cinco anos de cadeia enquanto que os PMs que arrastaram a Claudia Ferreira da Silva foram enquadrados no artigo 324 do Código Penal Militar, definido assim: "deixar, no exercício da função, de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar". Agora, não entendo porque não homicídio triplamente qualificado e formação de quadrilha. Desmilitarizar a polícia não ajudaria a acabar com este tipo de distorção?
Eu acho que isso é fundamental, não só por isso. Nossa polícia é completamente esquizofrênica, não existe esse modelo de polícia em qualquer lugar do mundo. É uma herança da Ditadura Militar, que a gente precisa superar. É ineficiente e é violenta. A gente não tem qualquer ganho. Não é uma polícia preparada para conviver com a democracia porque sequer ela convive internamente com a democracia. Faz dos próprios policiais e da sociedade, vítimas de um modelo de segurança, que não se justifica em nenhuma, nenhuma hipótese. Hoje, nós temos uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) tramitando, a PEC 51, que foi apresentada pelo Senador Lindbergh (Farias, PT-RJ) e idealizada pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares. Sem dúvida nenhuma, é uma possibilidade de avanço, um ponto de partida para um debate mais concreto, difícil, difícil de ser ampliado no Brasil porque a resistência é muito grande. Mas sem dúvida, uma das maiores necessidades que nós temos.

Mas é um debate que começou a aparecer com mais frequência desde as manifestações, não, deputado?
Sem dúvida alguma. Não era uma pauta inicial das manifestações. Eu trabalho com esse tema há muitos anos e sei que esse tema sempre reuniu um número muito pequeno de pessoas interessadas. Ele diz respeito à própria parte da segurança pública. Só que a própria violência policial nas manifestações... As manifestações permitiram que a sociedade conhecesse uma polícia violenta que nós sempre tivemos. Só que ela sempre foi direcionada para a periferia, para a favela e para um determinado setor da sociedade. As manifestações fizeram com que essa violência policial fosse generalizada para o conjunto da sociedade. Então, o debate da desmilitarização da polícia ganha as pautas, aparece nas manifestações a partir da própria violência policial nas manifestações. Se você olhar as manifestações anteriores ou iniciais, elas não tinham essa pauta. Esse cartaz não aparecia. E depois se transforma, talvez, na principal pauta, junto com o questionamento da Copa do Mundo.

Você foi vítima de um processo de difamação irresponsável e até obtuso iniciado pelo jornal O Globo. Por que eles querem tanto te tirar de cena?
O Globo faz parte deste projeto de cidade-negócio. O Globo é sócio. A empresa Globo é sócia desse projeto de cidade-business, cidade-negócio, cidade-commodity, como eles gostam de chamar. Olha para a cidade e vê cifrão, não olha para a cidade e vê pessoas. Então, eles estão na disputa da cidade e tentam eliminar aqueles que eles elegem inimigos dessa disputa, desse projeto de cidade. Eu realmente não estou do lado deles. O problema é que a gente espera sempre que a luta política seja feita com o mínimo de integridade e honestidade. Não foi o caso deles neste momento.

Matéria publicada originalmente pela Radio France Internationale, a 19 de março de 2014
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Beyoncé fantasiada de Pantera Negra é que nem a Barbie fantasiada de preta


Beyoncé apareceu de Pantera Negra no Superbowl. Da hora, é como se o Roberto Carlos fizesse uma homenagem à Aliança Libertadora Nacional no Especial de Fim de Ano da TV Globo. Mas chamar de revolucionário, comparar com John Carlos e Tommy Smith nas Olimpíadas de 68, como eu vi a rapaziada fazendo aí, é, no mínimo, exagero. A performance da Beyoncé não é nada disso. Ela apoia os Panteras Negras como grife, não como movimento político.

O eterno ministro da Defesa dos Panteras Negras, Huey P. Newton, deve ter revirado no túmulo com a apropriação que ela fez da estética black power e do X do Malcolm X. Porque tanto o X quanto a jaqueta preta são a afirmação política de que a cultura negra foi usurpada durante a escravidão. A Nação do Islã, grupo em que Malcolm X se formou como ativista, substituía os sobrenomes dos pretos por uma incógnita matemática. Era impossível saber o "verdadeiro" sobrenome de um preto. Os sobrenomes cristãos são herança dos antigos senhores de escravos, a indicação de que aquele negro pertencia a tal família. Assim, o sobrenome ocidental de todo negro é um título de propriedade, como uma marca a ferro quente.

A jaqueta preta dos Panteras também era uma incógnita, que respondia ao nacionalismo cultural. Esse "nacionalismo de churrasco", como dizia Huey Newton era uma filosofia afrocêntrica dos anos 60 que pregava um retorno cultural à África. Os partidários dessa ideologia se vestiam com dashiki nigeriano, usavam gírias inspiradas livremente em palavras africanas, comiam comida pseudo-africana e só compravam produtos de comerciantes pretos.

"Os nacionalistas culturais acreditam que um retorno à velha cultura africana vai permitir que eles reconquistem sua identidade e liberdade. Em outras palavras, eles acham que uma cultura 'africana' vai trazer liberdade política automaticamente", disse Huey Newton em uma entrevista de 1967 reproduzida no livro The Genius of Huey Newton. Não tem dashiki que indique de fato quem eu sou, diria Huey Newton. Pelo contrário, o dashiki não é mais do que sintoma de uma visão preconceituosa criada pelos brancos, que vê a África inteira como um país homogêneo e estereotipado. Não é mais do que um produto na prateleira de um comerciante preto.

Pros Panteras, o culturalismo é sempre reacionário. Eles nunca negligenciaram nosso direito de reivindicar nossas raízes; isso é fundamental, é o início da luta. Temos que saber quem somos, mas não para viver de um passado idealizado, mas pra idealizar o futuro. Como disse o outro fundador do partido, Bobby Seal, no livro Seize the Time, "não enfrentamos racismo com racismo. Enfrentamos racismo com solidariedade. Não enfrentamos capitalismo explorador com capitalismo negro. Enfrentamos capitalismo com socialismo. E enfrentamos imperalismo com internacionalismo proletário". Se hoje Bobby Seal fosse acrescentar uma frase a esse trecho, provavelmente escreveria: não enfrentamos falta de representatividade com Barbie preta.

A Barbie preta é igual ao dashiki: um branco decide que a gente é assim ou assado e vende pros pretos um estereótipo reducionista de nós mesmos. E a mensagem no fundo é a mesma de sempre, que vai desagregar qualquer pobre em qualquer lugar, independentemente da cor: ser é consumir. Ué, o slogan da Barbie é esse: "tudo que você quer ser". Só que ela mesma não é nada. Ela é a mina do Ken. Quem? Ela é a dona do carro da Barbie, dona da casa da Barbie, dona do cachorro da Barbie. A medida do "ser" dela é o "ter". Firmeza, se não dá pra matar a Barbie, é melhor ter Barbie preta do que só ter Barbie branca. Mas o ideal mesmo era não ter Barbie nenhuma. Acreditar que a Barbie preta representa alguma mudança pra negrada é que nem acreditar que o Celso Pitta é um prefeito pros pretos, coisa que o movimento negro de São Paulo fez em massa. Formation, essa faixa que a Beyoncé cantou no Super Bowl, é o hino da Barbie preta:

When he fuck me good I take his ass to Red Lobster, cause I slayQuando ele me fode bem, eu levo ele pra comer lagosta, porque eu eu sou foda

If he hit it right, I might take him on a flight on my chopper, cause I slaySe ele mandar bem, eu levo ele pra voar no meu helicóptero, porque eu sou foda

Drop him off at the mall, let him buy some J’s, let him shop up, cause I slayLargo ele no shopping, deixo ele comprar o que quiser, porque eu sou foda

I might get your song played on the radio station, cause I slayPosso conseguir que sua música toque no rádio, porque eu sou foda

You just might be a black Bill Gates in the making, cause I slayVocê pode até ser um futuro Bill Gates preto, porque eu sou foda

Cantar isso aí com a estética dos Panteras Negras é um requinte de crueldade. É dar à jaqueta preta o sentido do dashiki, transformá-la na marca de um culturalismo apolítico. É transformar deliberadamente uma estética revolucionária num produto, esvaziando totalmente a principal demanda do Partido dos Panteras Negras para a Auto-Defesa: a transformação radical da sociedade por meio da expropriação dos meios de produção da burguesia. E não para formar uma burguesia preta, mas para distribuir recursos de forma igualitária.

Difícil encontrar coisa mais reacionária do que eliminar o revolucionário de nossos movimentos políticos. Se Beyoncé tivesse expressado apoio ao Black Lives Matter e só, beleza, eu acharia foda. Mas eu acho que não dá para esvaziar os Panteras Negras desse jeito. É uma sacanagem com essas pessoas que dedicaram as vidas a uma causa revolucionária. Você pode comprar um Big Mac sem maionese, comprar o disco da Beyoncé só com as faixas que você curte. Mas não pode mandar tirar a política da sua revolução.

Texto publicado originalmente em 11 de fevereiro de 2016

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América Latina: na luta até que a festa nos separe ou vice-versa

As veias abertas no Memorial da América Latina, em São Paulo. Foto: Roberto Alegre/Flickr

Ninguém sabe muito bem definir o que é ser latinoamericano. Mas todo mundo que é sabe que é. Via de regra, latino-americanos se veem como amigáveis, sociáveis, informais, talvez um pouco folgados. A cordialidade, no sentido radical que Sérgio Buarque de Hollanda emprega à palavra, não se restringe ao Brasil; é um dado marcante da maioria das sociedades latino-americanas. Somos um continente de gente passional e apaixonada, que faz amor e guerra na mesma intensidade, que chora e é capaz de matar por um jogo de futebol, mas é familiar, solidário, hospitaleiro e tolerante; ao mesmo tempo em que agride e assassina mulheres e homossexuais como em nenhum outro canto do planeta.

Há também um traço geral de aversão à ordem, uma espécie de rebeldia generalizada que, no entanto, raramente se traduz em revolta organizada ou em movimentos revolucionários. Este tipo de circunstância mais explosiva ocorre em comunidades étnicas e econômicas específicas, não necessariamente como fruto desta característica cordial. São as identidades regionais que eclodem movimentos de contestação em larga escala, como Chiapas, Oaxaca, o Exército Zapatista, a Revolução Sandinista e mesmo movimentos históricos, como Canudos e as repúblicas quilombolas Saramaca, no Suriname, ou Palmares, no Brasil.

Orgulhos e nacionalismos
Paradoxalmente, todos os países têm um inegável orgulho nacional, que dá à luz frequentes rivalidades, mas raramente descamba para conflitos deliberados. Brasileiros não gostam de argentinos por causa do futebol. Argentinos não gostam de chilenos por causa do colaboracionismo de Pinochet com a invasão britânica das Malvinas. Preconceituosos, tanto do Brasil quanto da Argentina e do Chile, não gostam de bolivianos ou peruanos, a quem acusam de imigrar para "roubar empregos" - ainda que nem brasileiros nem argentinos nem chilenos cobicem os empregos ocupados por bolivianos e peruanos. Colombianos e venezuelanos não se bicam porque representam lados opostos em uma polarização política que, neste momento, divide o continente inteiro.

Ou seja, somos um povo dado a nacionalismos dos mais variados tipos. Claro que isso se justifica por nossa história, tão fortemente marcada pela destruição de identidades culturais. Temos uma carência identitária sistêmica. Mas, justamente por isso, o nacionalismo não diz respeito simplesmente ao orgulho de pertencimento ao Estado nacional. Temos o orgulho do pertencimento a uma casa, a uma rua, a um bairro, a uma zona da cidade, a uma cidade, a um estado, a um país e, finalmente, a um continente.

Se os micronacionalismos se manifestam no cotidiano, o continental costuma chamar mais atenção de quem já viveu fora. É comum entre pessoas que fizeram intercâmbios estudantis ou trabalharam no exterior dizer que a maior parte de seus amigos fora do país era latino-americana, ainda que não necessariamente da mesma nacionalidade. Dentro do continente, as identidades nacionais se reforçam, sem no entanto, se sobrepor às culturais.

Além da questão do pertencimento cultural, resiste na América Latina um orgulho de pertencimento à própria terra, talvez por conta da história de expropriação de bens territoriais. É preciso lembrar, como faz o grande autor uruguaio Eduardo Galeano no seu "Veias Abertas da América Latina" (livro que Hugo Chávez deu de presente a Barack Obama em uma cúpula da OEA), que nosso território foi o maior foco de extrativismo capitalista da história. A riqueza das grandes nações foi construída com matéria-prima latino-americana e mão-de-obra africana, com pleno consentimento de nossas elites, até hoje oligárquicas.

Na maior parte da nossa história, essas elites foram estabelecidas alhures e trabalharam ativamente pela transferência da riqueza latino-americana, primeiro para a Europa e, depois, para os Estados Unidos. Não é à toa que, em nosso primeiro ciclo democrático de proporções continentais, os povos da América Latina elegeram governos progressistas, fortemente ligados a identidades locais.

Ciclo progressista
No Brasil, empossamos o ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva; a Venezuela elegeu Hugo Chávez Frias, um militar insubordinado mestiço; a Bolívia foi com o índio cocalero Evo Morales; a Argentina resgatou o legado peronista nos anos Kirchner; Rafael Correa, cujo pai era mula (transportador de cocaína para os Estados Unidos) e a mãe cozinheira, assumiu o Equador; Fernando Lugo, padre da Teologia da Libertação fortemente ligado aos movimentos sociais, o Paraguai; o ex-guerrilheiro e preso político José "Pepe" Mujica, foi eleito no vizinho Uruguai.

A vitória recente do liberal Maurício Macri na Argentina, a longa agonia midiática que culminou em golpe no Brasil e a derrota de Evo Morales em um referendo para autorizar seu quarto mandato parecem ser as últimas pedras sobre a sepultura do ciclo progressista na América Latina. Essa foi uma época marcada por inclusão social e promessas de autonomia que, via de regra, se mostraram menos sólidas do que se anunciava. No Brasil, por exemplo, uma das grandes críticas à esquerda do PT é que os governos Lula e Dilma formaram consumidores, mas não cidadãos. A consequência direta desse processo de inclusão sem politização seria o crescimento de uma lógica "meritocrática", que impulsiona um conservadorismo generalizado em defesa da propriedade e não de ideais e bens imateriais.

No caso da Venezuela e da Bolívia, à maneira do que já acontecia em Cuba, houve uma excessiva personalização do movimento progressista em torno dos "comandantes em chefe", respectivamente Chávez e Morales. Na ausência dessas figuras fortes, o processo inclusivista - que ressuscitou a economia boliviana, praticamente erradicou o analfabetismo na Venezuela e criou uma rede interamericana de solidariedade petrolífera - se vê ameaçado. O atual mandatário venezuelano, Nicolás Maduro, já mostrou não ter o carisma ou a competência para dar continuidade à "revolução bolivariana". A Bolívia, depois do rechaço - pequeno, mas efetivo - à possibilidade de um quarto mandato do presidente cocalero, deve se perguntar seriamente qual quadro do Movimiento al Socialismo estaria apto a herdar o "evismo".

No Brasil, pôde-se observar processo parecido, com a transição de Lula, que deixou o Planalto com mais 80% de aprovação, para Dilma Rousseff, que, antes de completar o primeiro ano do segundo mandato, ostentava a maior rejeição da história da presidência nacional. E na Argentina, a figura de Juán Domingo Perón é tão forte que a esquerda não se designa socialista, mas peronista.

Ou seja, pode-se dizer que o personalismo é uma característica mais ou menos geral da política latino-americana - e que, obviamente, mantém uma relação dialética com a sociedade em geral. Em outras palavras, os líderes carismáticos e a sociedade que os propicia se nutrem mutuamente um do outro. E talvez este personalismo (e a consequente incapacidade dos grupos políticos de formar novas lideranças viáveis) seja uma das razões - obviamente, não a única - pelas quais é quase seguro afirmar que este primeiro ciclo progressista da história latino-americana está perto do fim. Simplesmente não há quadros carismáticos que deem sequência a um processo político que não criou mecanismos para prescindir de líderes carismáticos.

Polarização política
Não será uma morte tranquila, ao que indica a sensação generalizada de polarização política. Fontes argentinas dizem que o país está rachado ao ponto de as discussões descambarem para a violência verbal pura e simples. É um cenário que se pode ver sintetizado na oposição entre a liberalíssima Colômbia e a Venezuela, cujo bolivarianismo parece uma caricatura do que já foi. Um cenário com o qual nós, brasileiros, sejamos coxinhas ou petralhas, certamente podemos nos identificar.

Esses próprios rótulos são indício da morte do diálogo entre dois projetos opostos de integração regional: um exclusivamente econômico, que tende a restringir os direitos humanos e ampliar a liberdade de capitais; e outro social-democrata, que também visa a ampliação da circulação de capitais e o desenvolvimentismo, mas com uma contrapartida social. Ao que parece, nenhum dos dois lados é profundamente preocupado com as questões ambientais e ambos acreditam na receita do crescimento como forma de geração de riqueza - ainda que, ideologicamente, um defenda a distribuição e o outro, a acumulação.

Se a esquerda acredita no desenvolvimento sustentável, está acuada demais para dizê-lo no inverno de sua primazia continental. Nem os partidos ditos "verdes" ousam apontar a fórmula da ampliação da produção, do reforço do atividade econômica, da medição da riqueza pelo PIB, como responsáveis por nossa inexorável marcha à autodestruição. Mas a falta de propostas realmente ousadas de enfrentamento às grandes questões de nossa época não é basta para que se estabeleça uma pauta de diálogo possível entre os dois polos da América Latina pós-ciclo progressista.

Reggaeton: um ritmo, dois projetos de mundo
Duas canções e seus respectivos videoclipes podem fornecer pistas para a análise do clima ideológico no auge e no ocaso do ciclo progressista: Latinoamerica (2011), do grupo portorriquenho de reggaeton Calle 13; e La Gozadera (2016), da dupla cubana (também de reggaeton) Gente de Zona, com participação do astro latino-estadunidense Marc Anthony. A primeira reúne cantoras de todo o continente, historicamente identificadas com a esquerda, da colombiana Totó la Momposina à deputada socialista peruana Susana Baca. O Brasil é representado por Maria Rita, que tem tanto pedigree que dispensa discografia.

O videoclipe, cujo protagonista é o povão, começa com os artistas chegando ao estúdio de uma rádio comunitária da América andina. Eles são anunciados pelo locutor em quechua. Os primeiros acordes entram no ritmo de um coração que bate sob a terra. "Sou o que deixaram/sou toda a sobra do que roubaram/(...) Mão de obra camponesa para seu consumo", começa a letra, para seguir em crescendo "(...)Sou o desenvolvimento em carne viva/um discurso político sem saliva/As caras mais bonitas que já conheci, sou a fotografia de um desaparecido/Sou o sangue dentro de suas veias/sou um pedaço de terra que vale a pena/Sou uma cumbuca de feijão/Sou Maradona contra a Inglaterra marcando dois gols/Sou o que defende minha bandeira/A espinha dorsal do planeta é minha cordilheira/Sou o que me ensinou meu pai/Aquele que não ama sua pátria, não ama sua mãe/Sou América Latina, um povo sem pernas, mas que caminha".

Como fica claro no refrão ("Esta terra não se vende") ou em versos como "A Operação Condor invadindo meu ninho, perdoo mas nunca esqueço" e "Aqui se respira luta", a letra é uma ode ao sonho de Eduardo Galeano de integração alternativa, que substituiria o que ele chamava de "sacrifícios no altar do Deus mercado" pela prioridade às vontades, aspirações e necessidades dos povos. Este sonho parecia começar a se desenhar com a morte da ALCA (a Área de Livre Comércio das Américas promovida pela administração George W. Bush e enterrada com grande alarde pelos "socialistas do século XXI") e a emergência de um "Novo Mundo Possível" durante o Fórum Social Mundial, na alvorada do novo milênio, em Porto Alegre.



Aquele foi um primeiro passo para uma nova era de autonomia, que seria muito bem simbolizada pela recusa coletiva dos líderes latino-americanos em aceitar a presença de Barack Obama na cúpula da OEA (Organização dos Estados Americanos) depois de 2012, caso o mandatário norte-americano se recusasse a reconhecer o Estado cubano. Vale lembrar que Cuba foi excluída do organismo com a instituição do embargo econômico, em 1962. A partir daquele ano, aceleraram-se as conversas de bastidores entre Washington e Havana, que culminaram no restabelecimento das relações diplomáticas entre os inimigos históricos em 2015.

Obviamente, os Estados Unidos não desistiram de seu plano de integração econômica, ainda que a Nafta tenha sido uma catástrofe humanitária para o México. É neste contexto de guinada neoliberal, fracasso do projeto político alternativo e reaproximação dos norte-americanos de seus vizinhos (e durante quase meio século, quintal) ao sul, que aparece a "La Gozadera", da Gente de Zona com o nova-iorquino e ex-marido de Jennifer Lopez Marc Anthony.

Por uma questão burocrática, o vídeo foi gravado na capital de Porto Rico, San Juan. Mas a cidade é obviamente caracterizada de forma a reproduzir Centro Habana, o bairro popular no coração da capital cubana. E a moldura ideológica não podia ser mais descarada: mostra literalmente o americano que vem resgatar Cuba do "atraso". Os artistas cubanos começam o vídeo discutindo escandalosamente depois de bater sua máquina, como são chamados os carros cinquentistas que rodam a ilha até com motor de geladeira, contra um hidrante. Os dois decidem deixar o acidente para lá, sobem em cima do carro e começam a cantar. Marc Anthony surge por entre roupas estendidas em um varal das típicas azoteas (lajes) cubanas e entra a letra: "Miami me confirmou, Porto Rico me presenteou, Dominicana já respondeu e do Caribe tem você e eu, e se formou a gozadera" que, em bom cubanês, quer dizer festa. Então, de cada carro parado num trânsito extraordinariamente engarrafado para os padrões de Centro-Havana sai uma pessoa andrógina, vestida na bandeira de um país latinoamericano. E todos correm para a grande festa da integração que, ao contrário do que acontece em Latinoamerica, não se faz pela luta, mas pelo hedonismo.

Depois de muita dança, muita batida e pouca poesia, o clipe termina literalmente com Marc Anthony conduzindo o caminhão-grua que reboca a máquina quebrada dos cubanos. Característica da estética publicitária, a imagem não deixa qualquer espaço para a livre interpretação: o neoliberalismo finalmente veio a reboque tirar a América Latina do atraso e encher de gente bonita e antiscéptica uma Havana exageradamente popular.



Com estes dois vídeos e essas duas poesias tão distintas, é possível constatar como a América Latina mudou desde o início da década de 2010. Se começamos o período tentando integrar Cuba à Petrocaribe, à Alba e à OEA, terminamos reproduzindo com a ilha comunista o processo de integração pelo consumo que observamos no Brasil e que terminou por transformar o exército de reserva da esquerda em uma proto-classe média empobrecida e apavorada, de contornos fascistóides. Por isso, o que vier a acontecer com Cuba nos próximos anos será fundamental para compreender o encerramento do ciclo progressista e o futuro das relações entre o continente e o vizinho rico ao norte.

América Latina através do muro
Será que a estética reggaetonera de Havana vai substituir o mexicano de sombrero na caricatura imperialista do caráter latino-americano? Quem será a Carmen Miranda da nova política da Boa Vizinhança, essa que chegará pela desconstrução do maior ponto de convergência insurrecional do continente, que é a Revolução Cubana? Como advertiu o ex-Pantera Negra Mumia Abu-Jamal durante uma participação telefônica no ciclo de seminários The Black Radical Thought, que reuniu as militantes do Black Lives Matter com antigas lideranças negras, "a tática do império é sistematicamente substituir desafetos por gente de sua confiança".

Mas e se a pessoa de confiança for um símbolo? E se for o próprio Che Guevara, por exemplo? Claro, não aquele Che Guevara que se desentendeu com Fidel Castro, partiu para a internacionalização da luta comunista no Congo e foi morto pelo exército boliviano, mas o Che Guevara que estampa camisetas - às vezes, com a cara substituída pela de Homer Simpson; às vezes, com as orelhas do Mickey no lugar da estrela vermelha. Cuba é a novidade, é o novo porto de conquista das mentes e corações latinoamericanos pelo discurso hegemonista do "Deus mercado", principalmente depois da desestruturação da integração solidária que despontava no início do século XXI.

Marc Anthony faz um papel em que os Estados Unidos se especializaram há mais de 70 anos: o de embaixador cultural que padroniza e ressignifica a cultura latino-americana para um standard destinado ao consumo da própria massa latino-americana. É quase uma antropofagia terceirizada. Se, no início do milênio, vivemos uma década de reinvenção do ser latino-americano pelas bases populares, é de se esperar que esta reinvenção volte a cruzar o filtro do imperialismo cultural. A própria esquerda preparou o exército consumidor no campo em que prometeu formar cidadãos.

Padrões de consumo
É comum ouvir latino-americanos verem as populações de seus países como consumistas, excessivamente preocupadas com a imagem, pouco educadas e meio deslumbradas. Não chega a ser surpreendente que um reggaeton descompromissado, uma versão em espanhol do funk ostentação tenha ocupado no gosto popular latino-americano um espaço que, em outros momentos, pertenceu a músicas contestatórias ou identitárias. A identidade na cultura reggaetonera ostensiva se constrói pela aparência e a exibição do que se tem, não pelo que se é.

Talvez por isso, vários países latinoamericanos apareçam com frequência nos rankings de uso de redes sociais, principalmente o Facebook, uma plataforma exibicionista por excelência. Uma pesquisa de 2013 mostrava que, mesmo sem ser o país mais presente na rede social em números absolutos, o Brasil ostentava os usuários mais ativos no Facebook. Também sintomático do poder da ostentação nas redes é o fato de que os usuários latinoamericanos em geral confiam mais em celebridades na internet do que em seus próprios amigos.

Claro que o poder público, da mesma maneira que detectou a predileção latino-americana por líderes carismáticos, entendeu rapidinho o poder da comunicação em rede. A mesma pesquisa mostrava que os chefes de Estado latinoamericanos estavam entre os que mais se comunicavam pelo Twitter. O presidente com maior número de seguidores era, claro, Barack Obama. Mas o segundo colocado era Hugo Chávez. Cristina Kirchner, Dilma Rousseff, Enrique Peña Nieto e Juan Manuel Santos estavam todos na lista dos dez mais populares.

Quem tem mais exposição, mais fama, mais dinheiro e maior poder de propagação virtual tem maior credibilidade. Não precisa nem ser especialista nos assuntos que comenta. Até porque as pessoas se tornam especialistas não por formação, mas por popularidade nas redes, como é o caso das webcelebridades. E a América Latina tem uma particularidade cultural que facilita a propagação não só das celebridades, mas de fenômenos culturais em geral, do reggaeton à youtuber mexicana Yuya que, com suas dicas de maquiagem, percorre diversos países do continente. Trata-se do fato de que as fronteiras geopolíticas não refletem necessariamente limites culturais.

Se internamente, isso facilita nossa identificação com os vizinhos, do lado norte da fronteira continental, gera estereótipos em escala industrial. E, do norte do México ao extremo-sul da Argentina, latinoamericanos detestam ser retratados por figuras generalizantes, como o mariachi de sombrero, a morenaça hipersexualizada ou índio de poncho.

Por outro lado, existe a admiração vira-lata pelo que parece estrangeiro. Em entrevistas com quase 20 latinos de quatro países, foi possível detectar uma gritante contradição entre beleza idealizada, a beleza natural e autodescrição física. Loiros e pessoas muito brancas estão longe do que os latinoamericanos entendem por beleza natural e mais longe ainda de sua autodescrição. Mas aparecem em profusão quando se pergunta o que é beleza idealizada.
Esta distância entre o ideal e o real é ainda maior no caso da autodescrição física: as pessoas se dizem, em geral, baixas, escuras, sem traços europeus marcantes. Isso faz da propaganda na América Latina praticamente a antítese da identidade latinoamericana. A maioria das reinas que ditam a beleza na Venezuela podia ter nascido na Suíça. Ninguém que a gente vê pelas ruas do Brasil se parece com a Gisele Bündchen, símbolo maior da beleza brasileira no exterior. E no entanto, os estrangeiros acham que as brasileiras, justamente aquelas que não parecem com Gisele Bündchen estão entre as mulheres mais lindas do mundo. Será que a grama do vizinho é mais verde ou, de novo, somos nós que temos uma dificuldade meio vira-lata em aceitar quem nós somos?

Feminismo, preconceitos e religião
Talvez isso possa começar a mudar graças a dois movimentos de reivindicação identitária que varrem o continente de norte a sul: das mulheres e dos homossexuais. Talvez 2015 tenha sido o ano do empoderamento feminino na América Latina. Assim como na Primavera Árabe, as hashtags se transformaram em armas de internacionalização da luta política. De um extremo a outro do continente, pela primeira vez na história, estabeleceu-se um mesmo slogan libertário, na forma da hashtag #NiUnaMenos, que reivindicava o fim do feminicídio, mas dava espaço a outras pautas feministas, como a equidade de salários entre homens e mulheres ou a legalização do aborto. Não por acaso, foi neste ano que Brasil e Argentina, por exemplo, tipificaram o crime de feminicídio.

Também na última década, vários Estados latinoamericanos legalizaram a União Civil entre pessoas do mesmo sexo. É preciso sinalizar, no entanto, que a homofobia ainda é muito presente - frequentemente de forma violenta - e periga crescer, já que observa-se um aumento exponencial não só do pensamento conservador que já comentamos, mas também das igrejas pentecostais. Entrevistados de todos os países se disseram preocupados com o fato de que cada vez mais grupos religiosos fundamentalistas têm proliferado de maneira imprecedente e arrastado populações inteiras a um pensamento monolítico e intolerante às diferenças.

Claro que os negros também vão se molhar na tempestade fundamentalista, já que, como explica Slavoj Zizek, em termos filosóficos, as igrejas que aceitam conversões em massa tendem à intolerância, por uma questão de lógica bem simples: "se todos os seres humanos cabem em nosso rebanho, aqueles que estão fora do rebanho não são seres humanos".

Isso se expressa com clareza na demonização das manifestações religiosas de matriz africana. E com um agravante: ao contrário do que acontece no cristianismo, cujo espaço ecumênico é separado da vida cotidiana e o sagrado vive em divórcio litigioso com o profano, as religiões de matriz africana não têm um espaço cartesiano determinado e se integram ao cotidiano de forma orgânica. Assim, o rechaço à expressão religiosa se expande como rechaço à cultura afrodescendente geral, transformando o discurso diabolizante em um método de eugenia cultural. Filosoficamente - e às vezes efetivamente -, as pentecostais fazem na América Latina o que o Estado Islâmico faz no Oriente Médio: aplainar diferenças culturais e promover uma liberalização econômica radical.

Monopólio midiático e formação de opinião
Esse discurso eugenista já está na televisão latinoamericana, não só no tele-evangelismo, que se propaga em proporções alarmantes, mas na televisão aberta, corriqueira e "inocente", cuja única característica distintiva aparente são os sotaques. Seja no Peru, no Chile ou no Brasil, existe um mesmo tipo de apresentador para uma mesma categoria de programa e todos têm a mesma estética.

Poderíamos seguramente dizer que Mirtha Legrand é a Hebe Camargo da Argentina. Ou que o argentino Marcelo Tinelli, uma celebridade continental, é a edição hispanofônica de nosso Luciano Huck. Ou ainda que a Caracol é a Globo da Colômbia, a Televisa, a do México, a RCTV, a versão colombiana etc. Temos um tipo de estrutura midiática oligárquica que se alastra por todo um continente de baixo nível de letramento e se torna um verdadeiro poder paralelo.

Isso atenta contra a democracia, não só porque promove ampla manipulação ideológica, mas porque a mídia não tem qualquer pudor em converter-se em ator político. Há indícios de que esta configuração dos meios de comunicação teve papel fundamental na desestruturação do ciclo progressista latinoamericano. Em 2002, por exemplo, a RCTV participou ativamente de um golpe de Estado contra o presidente Hugo Chávez, eleito democraticamente. Tentativa de golpe de Estado é uma óbvia infração da lei de comunicação em qualquer lugar da terra e, por isso, a RCTV não teve sua concessão renovada. Mas é claro que, no resto da mídia latinoamericana, a não-renovação da concessão à emissora foi muito mais noticiada do que sua participação na intentona.

Há outros exemplos: houve forte apoio dos veículos conservadores da América do Sul ao conglomerado argentino El Clarín que, apesar de ter embargado por quatro anos a aplicação de uma emenda Constitucional aprovada pelos representantes eleitos da população, saiu como grande vítima da Lei de Medios de Cristina Kirchner. A campanha - em que, no fundo, cada um defendia seus próprios monopólios - foi tão intensa que, nem dentro do Mercosul progressista houve apoio à presidência argentina. Para ser eleita, Dilma Rousseff por pouco não jurou sobre a Bíblia que não tocaria na pauta do controle social da mídia. E, mesmo assim, terminou deposta por um golpe deliberadamente apoiado pelos meios de comunicação oligárquicos.

Essa concentração dá enorme poder aos conglomerados midiáticos em ditar tendências de qualquer espécie. Todos os entrevistados, independentemente do país, afirmaram que é a televisão, em suas diversas modalidades, quem determina o que consome a população em geral. Ainda que haja caminhos culturais que influenciam a maneira como as coisas chegam até a TV - caso da paixão dos venezuelanos e colombianos pelos concursos de misses; dos argentinos pela moda internacional; ou dos brasileiros pelo Carnaval -, é a tela quem faz o tête-à-tête com o consumidor.

Lazer
Como todos os apresentadores têm a mesma cara, a mesma voz, a mesma classe social e o mesmo ethos, não é de se admirar que haja uma certa esquizofrenia entre o que as populações latinoamericanas são e o que elas idealizam em termos estéticos. Elas aspiram à estética de uma elite eurocêntrica, que reivindica suas raízes europeias pela negação ou ridicularização da diversidade etnocultural, como nos casos do Zorra Total ou de seu correspondente colombiano, Sábados Felizes. As novelas ainda são unanimidade entre as populações latinoamericanas, mas se veem hoje obrigadas a dividir espaço com toda a sorte de reality shows: dança, cozinha, música, sobrevivência na selva, lo que quieras.

Mas este tipo de narrativa popularesca e estigmatizante tem perdido espaço, como aponta o sucesso de séries internacionais de estrutura complexa, como House of Cards e Game of Thrones, citadas por todos os entrevistados. Valeria uma pesquisa à parte que determinasse como essas séries são vistas e o que apreende delas a média da população latinoamericana. Independentemente do que possamos descobrir, principalmente com uma demografia deste público, não se pode negar que são produções exigentes, centradas em complexas relações político-sociais.

Mas, entre os que veem novelas e os cúmplices brechtianos de Frank Underwood, está o grande circo da América Latina, o futebol. De todas as respostas que obtivemos com as entrevistas, talvez esta seja a mais unânime: a paixão nacional é a bola. Seja nas respostas dos colombianos, que hoje admiram Falcao e James Rodriguez e ontem admiraram Asprilla, Valderrama, Rincón e Higuita; seja na ode argentina à "mano de Dios" que fez injusta justiça a todo um continente invadido; seja no orgulho mexicano de seu monumental estádio Azteca.

Como disse o inglês Franklin Foer, o futebol explica o mundo. Mas se você for à América Latina durante uma Copa do Mundo, há muito pouco que se possa explicar: as fronteiras geopolíticas se sobrepõem às identidades culturais e joga pro espaço a teoria que defendemos até aqui de que as nacionalidades são menos importantes do que as identidades. Quando tem futebol, impõe-se a bandeira nacional e pronto, só a dialética explica. Mas, como já dissemos, somos dados a nacionalismos de qualquer espécie e, mais, somos cordiais. Tudo é apaixonado, fanático. Por isso, tendo a pensar que o coração que bate sob a terra de Latinoamerica tende a durar mais que a Gozeada da abertura econômica.

Artigo escrito em 9 de fevereiro de 2016
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Na cozinha de Dilma


Dilma em Porto Alegre, 2010. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Dilma estava tirando um suflê do forno e cantarolando "Deixa a vida me levar", enquanto eu terminava de temperar a salada.

- O que a senhora acha da revolução em Rojava? - perguntei.
- Que que eu...

As três primeiras palavras, ela respondeu ainda sorrindo, com a cabeça longe. Na quarta, me encarou espantada:
- Quê?! Por que você tá me perguntando isso?
- É que a senhora é presidenta, né?
- Ah... - ela pareceu devanear de novo.
- Sabe, presidenta, morando fora do Brasil, eu encontro muito brasileiro que está conseguindo estudar fora e rodar o mundo graças aos governos do PT. A maioria é brilhante, tem uma sede de aprendizado enorme. Mas a gente, a imensa maioria dos brasileiros, tem uma dificuldade em ler os grandes acontecimentos da história, né?

Carregamos nossas contribuições culinárias da cozinha pra sala da casa do Manuel, onde estávamos. Dilma se sentou na cabeceira; eu, na quina, do lado dela.

- É verdade que a gente é meio autocentrado...
- A senhora mais do que o presidente Lula.
- É, mas o presidente Lula tem tido que se concentrar em se defender. Querem acabar com ele de qualquer jeito.
- E com a senhora. Mas aí que tá, presidenta: eu, a senhora, o Lula, o Murillo, a Elisa, a Petra, a gente é tudo uns grãozinho de areia na história.
- Uns mais que outros, né?
- Lógico, eu não tô me comparando com o presidente Lula nem com a senhora. Mas a parada é que a elite mundial, o 1%, decidiu que a gente vai morrer igual. A gente, eu digo, como instituições. Eu, como negro, a senhora, como Estado, e o Lula, como representante da classe trabalhadora, por mais que esperneie dizendo que enriqueceu banqueiro até dizer chega.
- E ele fez isso mesmo, distribuindo renda ainda por cima! Foi incrível! Saiu com 82% de aprovação...
- Parece distante, né?
- Parece...
- Sabe por que ficou tão longe? Porque ali, ainda tinha uma sementinha de utopia. E é isso que o capitalismo resolveu destruir nos últimos anos: a utopia. O Lula, por mais conservador que tenha sido...
- Conservador?! Foi o presidente que mais distribuiu renda na história do país!
- Tá vendo? Olha a senhora regionalizando a conversa! Claro que foi conservador, ele empoderou banqueiro, empoderou imprensa reacionária, empoderou bancada evangélica. Que nem a senhora, que tem Kátia Abreu de ministra, declara que a idade de aposentadoria é abusiva e não taxa grandes fortunas.
- Ah, mas você não tem ideia do que rola nos bastidores do governo...
- Oxalá me livre! Nem quero saber, presidenta! Mas a Kátia Abreu é um bom exemplo. A senhora viu a entrevista dela pra Folha? Pô, presidenta! Ela falou com todas as letras: uns têm que morrer pra outros sobreviverem. Ela falava de empresa, mas a gente sabe que vale pra pessoa também! Sua ministra é a única no governo que tá pensando globalmente. O resto, vocês tão tudo aí, chafurdando nos probleminha que a Globo fala que é importante. Eles tão é desviando o foco! A Kátia Abreu, quando ela fala isso, ela está repetindo o que disse o presidente da Turquia, o Erdogan, que anunciou o genocídio curdo como promessa de ano novo. E o Obama, que também tá pensando grande, responde: a Turquia tem o direito de se defender. Se defender do quê, presidenta?!
- Do PKK...
- Nada! Dos pobres. Esses dias eu vi um historiador indiano que dá aula nos Estados Unidos falar um negócio muito interessante: sabe por que o mundo está em crise? Porque os ricos declararam greve. Eles simplesmente não vão mais pagar impostos. Acabou. Imposto distribui renda e eles chegaram à conclusão que a produção capitalista pode viver muito bem sem três quartos da humanidade. A gente troca esse povo todo por cone. Esse é o jogo global, presidenta! E é por isso que eles vão acabar com o Estado: pra evitar que, em algum lugar do planeta, em algum momento da humanidade, alguém volte a sonhar com distribuição de renda, mínima que seja. Seu governo, o governo do Haddad, que ridiculariza movimento social, vão ser tudo umas nota de rodapé na história da extinção do Estado e da utopia.
- Foi por isso que você perguntou sobre a revolução em Rojava.
- Sim. Também porque eu estou sonhando. E no meu sonho, ainda existe utopia.

Texto de 2 de fevereiro de 2016, quando a democracia era só precária e não letra morta.
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Em Calais, Banksy ataca maneira como Europa lida com migração


 Na "Selva" de Calais, Stevie Jobs é só mais um imigrante. Foto: Philippe Huguen/AFP

Neste fim de semana, a cidade de Calais, que se tornou símbolo da crise migratória, acordou decorada por três obras do artista de rua britânico Banksy. Um dos grafites, no coração do acampamento onde vivem 4,5 mil migrantes em condições precárias, mostra Steve Jobs vestido como refugiado, carregando uma trouxa e um velho computador Macintosh. Em um raro comunicado publicado em seu site, o grafiteiro lembrou que o fundador da Apple, morto em 2011, era filho de um imigrante sírio.

"Sempre tentam nos fazer acreditar que a imigração representa perda de recursos para os países, mas Steve Jobs era filho de um imigrante sírio. A Apple é a empresa mais lucrativa do mundo, paga mais de US$ 7 bilhões anuais em impostos e só existe porque a entrada (nos Estados Unidos) de um jovem natural de Homs foi permitida", escreveu o artista.

Além do retrato de Jobs, que se mistura às barracas improvisadas dos moradores da "Jungle (Selva)", como o lugar é conhecido, os outros dois grafites feitos em Calais alertam para o drama dos migrantes, mas por meio da intertextualidade com outras obras de arte. No centro da cidade, Banksy parodiou "A balsa da Medusa", a mais célebre tela do pintor francês Théodore Géricault, e um dos marcos da iconografia ocidental. A ironia do trabalho do artista britânico não está só na frase que acompanha a obra ("não estamos todos no mesmo barco") ou na substituição do navio Argus retratado no quadro de 1819 por uma representação do ferryboat que atravessa confortavelmente o Canal da Mancha várias vezes ao dia.



Um barco na contramão
 
Banksy, ao substituir os náufragos do quadro original por imigrantes "ilegais", reverte a lógica da opressão e remonta à Colonização que é, em última instância, a raiz histórica da crise migratória. Isso porque a tela original retrata, em proporções magnânimas (4m x 7m), a balsa que leva os sobreviventes do naufrágio da fragata Medusa, em 1816. A embarcação atravessava justamente o mar Mediterrâneo - principal rota da atual migração econômica para a Europa -, em uma missão colonizadora francesa rumo ao Senegal.

Além de soldados, oficiais do governo, burocratas e suas famílias, a fragata transportava escravos e condenados à deportação. Quando o barco veio a pique, em consequência de um erro de cálculo, os brancos subiram nos poucos botes disponíveis e conseguiram ser resgatados pelo Argus. Agora, num rodapé do centro de Calais, Banksy chama de volta à responsabilidade europeia o problema da crise migratória, lembrando que, na maior parte da história, foram europeus que cruzaram o Mediterrâneo para tentar nova vida em terras africanas e não o inverso. Afinal, o que foi a colonização, senão uma migração econômica em larga escala?
 
Abutre à espreita

A terceira obra, realizada em um posto de segurança da praia de Calais, representa uma garotinha de cabelos ao vento, que espia a costa britânica através de uma luneta. Um imenso abutre repousa sobre a luneta, em referência direta à famosa fotografia "Vulture Stalking a Child (Abutre perseguindo uma criança)", de Kevin Carter. Em março de 1993, o fotógrafo registrou uma garotinha esquelética, quase inerte, com a testa colada no chão de um vilarejo devastado no sul do Sudão. Ao fundo, um abutre espreita, pacientemente.

A fotografia, vendida ao New York Times, foi considerada uma metáfora da situação de abandono da África pós-colonial. Mas, tão logo estampou as páginas do jornal, desencadeou uma enxurrada de críticas. Os leitores, que queriam saber o destino da garotinha, se revoltaram ainda mais depois de uma entrevista em que Carter assumiu que aguardou por 20 minutos que o urubu abrisse as asas, o que não aconteceu. A atitude dele de assistir impassível à lenta agonia desta criança acabou obrigando o diário a pedir desculpas públicas. O fotógrafo chegou a se dizer arrependido da própria passividade. Três meses depois da publicação, ele se suicidou.

Com estas três obras, Banksy estampou em Calais uma crítica ampla à maneira como a Europa resolveu lidar com a crise. A menininha representa a lenta agonia que os migrantes sofrem na Selva; a balsa, a crueldade da discriminação entre seres humanos de primeira classe e seres humanos simplesmente descartáveis. O grafite de Steve Jobs ilustra como o preconceito prejudica os próprios preconceituosos.

Mas, talvez, a grande ironia deste novo trabalho de Banksy tenha se concretizado na reação das autoridades de Calais: a prefeitura anunciou que vai proteger as obras para que não sejam depredadas. Afinal, a assinatura de Banksy vale muitos milhões no mercado especulativo da arte. O grafiteiro queria sensibilizar em relação ao drama humano, mas as autoridades são mais sensíveis ao dinheiro. Como o próprio artista escreveu, "não estamos todos no mesmo barco".

Matéria publicada originalmente pela Radio France Internationale, a 14 de dezembro de 2015
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Varoufakis explica porque renda mínima universal é incontornável


Yanis Varoufakis, em outubro de 2015. Foto: Marc Lozano Bosch/Flickr

Em um congresso sobre o Futuro do Trabalho, no Gottlieb Dutweiler Institute, Zurique, 4/5/16, Yanis Varoufakis demonstra que uma renda mínima universal é indispensável para evitar a barbárie. O ex-ministro das Finanças do Syriza que, em 2015, encabeçou uma das mais árduas disputas da história da Comissão Europeia contra a Troika de credores da Grécia, mostra que a luta pela reinvenção da esquerda deve passar pela contestação inequívoca de uma mentira neoliberal. Aquela que diz que a riqueza é gerada pelo setor privado e depois distribuída, via Estado, ao público. O que acontece é o contrário: a produção capitalista contemporânea é feita coletivamente e apropriada pelas grandes corporações. Milhões de pessoas - como eu, que fiz as legendas deste vídeo e as entreguei de graça ao YouTube - geram o produto destas empresas. Por que aceitamos que umas poucas corporações monopolizem os dividendos da produção social de valor?
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