17 setembro, 2013

Fogo cruzado na Jamaica, 1973

Bunny Wailer não queria fazer a turnê de 1973 pelos Estados Unidos. Em uma sala da Island House na Beverly Hills kigstoniana, o capo da gravadora, Chris Blackwell, apresentou a lista de gigs que havia preparado para os Wailers. Bunny pediu uma conversa em particular. “Chris”, disse, “nós somos rastas, não podemos tocar em lugares como esses que você reservou”. Os lugares eram casas como o Matrix Club, em São Francisco, o Paul’s Mall, em Boston, o Max’s Kansas City, em Nova York.

Todos clubes tímidos, com infra-estrutura precária, pouca aparelhagem de som, para públicos acanhados. Mas esses detalhes técnicos eram o mínimo para Bunny. O que preocupava o barítono dos Wailers era o fato de que essas casas recebiam shows de strip tease, quiçá com vias abertas à prostituição. “Rasta no deal wit’ Babylon (rasta não lida com a Babilônia)”, dizia Bunny a Blackwell, enfatizando o fato de que aqueles lugares de perdição não condiziam com a mensagem que os Wailers queriam passar com sua música.

A mensagem estava em faixas como “Concrete Jungle”, “No More Trouble”, “400 Years” e “Slave Driver”. Essa última dizia: “Toda vez que ouço o barulho do chicote, meu sangue corre frio; eu me lembro no navio negreiro, como eles nos brutalizavam até a alma. Hoje, dizem que estamos livres, apenas para nos acorrentar à pobreza. Meu Deus, o analfabetismo é uma máquina de fazer dinheiro”. De fato, um discurso como esse não combinava com ambientes em que a diversão mais barata era prioridade.

Bunny Wailer não partiu na turnê do “Catch a Fire”, o primeiro disco da banda em uma grande gravadora. “Eu pensei que meus irmãos me acompanhariam nesta decisão”, disse ao diretor Kevin McDonald (“O Último Rei da Escócia”), em entrevista para o documentário “Marley”, de 2012. Não foi o caso. Bob Marley e Peter Tosh seguiram em turnê com Joe Higgs, compositor de sucesso no gueto de Trenchtown e tutor do então trio vocal, no lugar de Bunny. “Fui trocado pelo meu professor…”, lamentaria quase 40 anos depois.

Tosh, apesar de ter topado a excursão babilônica a bordo do pássaro de ferro, também nunca esteve muito à vontade — eufemismo! — com o todo-poderoso da Island Records. Blackwell jura que foi dele a ideia de trocar o nome do grupo de Bob Marley & The Wailers para simplesmente The Wailers, como grafado na capa original de “Catch a Fire.” “Era mais palatável para o mercado inglês”, justificaria. A ideia era vender o grupo como uma banda black de rock já que, fora da Jamaica, o reggae era visto como uma música “menor”.

Mas para Peter Tosh que, nas internas, chamava Blackwell (“Preto bom”, em tradução abolicionista) de Whiteworst (“Branco pior”, idem), o executivo foi o mentor da virada dos holofotes em direção a Bob Marley. Militante que só ele, o compositor de “Legalize It” sentia que esse negócio de “palatável pro mercado branco” fedia a Babilônia. “Whiteworst queria definir nosso caráter e subestimar nosso talento”, declarou um ano depois da morte de Marley.

Como? A resposta está no documentário “Catch a Fire”, produzido pela rede britânica BBC em 1999. Historinha: tudo remete ao primeiro encontro de Chris Blackwell com os Wailers. Em 1972, eles estavam em Londres para trabalhar com o soulman americano Johnny Nash na trilha sonora de um filme sueco. Como o filme nunca viu a luz do dia, os três jamaicanos passavam frio e fome na Terra da Rainha e cogitavam até largar o mercado musical. Blackwell, que já conhecia e até tinha lançado na Europa uma coisa ou outra dos Wailers, convidou os rude boys para uma reunião. “Me disseram que eles eram problema na certa”, conta Blackwell no filme da BBC. “Que, se eu colocasse dinheiro na mão desses caras, eles desapareceriam e a grana sumiria junto”.

Mas ele resolveu apostar e liberou cinco mil libras – uma fortuna para o padrão da indústria fonográfica jamaicana da época. Eles voltaram para a ilha e, poucos meses depois, convidaram o chefe para ouvir as demos do que viria a ser “Catch a Fire”. Blackwell adorou. Sentiu que tinha ouro nas mãos, assim que ouviu as primeiras notas do violão de Tosh em “Concrete Jungle”, faixa que abriria o disco. Mas o violão foi primeiro cair. Em seu lugar, entrou a guitarra do roqueiro americano Wayne Perkins. Sugestão de Blackwell, acatada na hora por Bob Marley. Peter Tosh torceu o nariz.

Perkins também fez o solo de bottle neck em “Rock It Baby”. E o tecladista John “Rabbit” Bundrick que, em 1979, integraria o The Who, substituiu os teclados que justamente Tosh havia gravado para “Stir it up”. Bob acatou de novo e a tensão cresceu. Duas faixas foram excluídas do disco, “High Tide and Low Tide” e “All Day, All Night”. Aos olhos de Peter Tosh, o disco que saiu em 1973 foi mais de Marley, Blackwell and the White Rockers do que de The Wailers ou mesmo Bob Marley and The Wailers. Estava na cara que as relações no maior trio vocal da história da Jamaica — que “nunca foram fáceis”, como relataria Max Romeo, em 2012 — haviam estremecido sem volta.

Ainda em 73, eles voltaram ao estúdio para gravar “Burnin’”, quase uma coletânea saudosista dos tempos do ska. “Duppy Conqueror”, “Put it On” e “Small Axe”, clássicos das pistas caribenhas desde os anos 60, entraram no repertório. Mas a terceira faixa do lado A, uma das poucas inéditas, entornou o caldo, para o bem e para o mal. “I Shot the Sheriff” foi a certidão de divórcio dos Wailers, anunciado cinco mil libras antes. Regravada por Eric Clapton, a canção alçou Bob Marley ao status de superstar global. Paul McCartney e George Harrison foram visitá-lo em camarins. Stevie Wonder o convidou para participações em shows, Rod Stewart e Joe Cocker queriam ser Bob Marley.

Tosh e Bunny seguiram carreiras irregulares, com uma ou outra pérola, e um rancor latente. Bob foi… Bob é. Continuará sendo por muitos anos mais. E talvez Chris Blackwell não estivesse de todo errado.

Matéria publicada originalmente na Radiola Urbana, a 17 de setembro de 2013
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