26 julho, 2019

"O Rei Leão" e a luta de classes


https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/2/23/LionKingCharacters.jpg


Juca Kfouri postou uma piada em seu blog no UOL: "Recorrendo a mentiras e traições, um velhaco covarde chega ao poder, convoca uma equipe de hienas para auxiliá-lo em seu desgoverno e em tempo recorde destrói todos os recursos naturais do território que comanda.

Calma, gente: é só a sinopse de O Rei Leão."

De fato, há uma semelhança divertida com a ascensão do bolsonarismo. Mas a piada do Juca me inspirou a analisar um pouquinho mais a fundo as relações de classe dentro de "O Rei Leão". E para fazer isso dentro de uma perspectiva marxista, há um livro incontornável, publicado em espanhol por Armand Mattelart, em 1971. Chama-se "Para ler o Pato Donald".

Nele, o sociólogo belga explica que "O imaginário infantil é a utopia política de uma classe. Nas historinhas da Disney, nunca se encontrará um trabalhador ou um proletário, ninguém jamais produz nada industrialmente. Mas isso não significa que a classe proletária esteja ausente. Pelo contrário: está presente atrás de duas máscaras, como bom-selvagem e como lúmpen-criminoso. Ambos personagens destroem o proletariado como classe, mas resgatam dessa classe certos mitos que a burguesia construiu desde seu surgimento para ocultar e domesticar seu inimigo, para evitar a solidariedade [de classe] e fazê-lo funcionar fluidamente dentro do sistema, participando de sua própria escravização ideológica".

Concordo com a entrelinha do Juca, Scar é um líder carismático de traços fascistoides. E, como qualquer líder fascista, ele explora o ódio de classe do lúmpen-criminoso e reorienta esse ódio para um bode expiatório. No caso de "O Rei Leão" - e essa é a inversão fundamental em relação ao fascismo real - o bode expiatório não é o elo mais fraco da corrente (o imigrante, o judeu, o muçulmano etc.), mas a antiga classe dominante. Ou seja, o fascismo do filme não oprime o proletariado; ele é encampado pelo lúmpen-criminoso para oprimir a burguesia.

Essa submissão temporária que a classe dominante sofre pela intentona fascista justifica o restabelecimento do domínio burguês sobre o resto da sociedade. Dentro do filme, a única alternativa à opressão fascista é a retomada da opressão burguesa, que, em "O Rei Leão", se traveste de "justiça". A trama macro-estrutural é, então, a história da restauração das posições pré-definidas de classe, que é eufemisticamente chamada de "círculo da vida".

Os leões são um "povo escolhido" e o filme legitima sua dominação "natural" por sua superioridade moral, não pela exploração dos demais. Claro que isso só é possível porque, radicalmente anti-marxista como qualquer produção Disney, a trama elimina da equação um elemento fundamental das relações de classe no mundo real, que é o trabalho. Como não há extração de mais-valia, não há exploração. Sem trabalho, o restante do proletariado (o bom-selvagem encarnado por Timão, Pumba e sua turma) não vive sob a opressão dos leões, mas numa eterna orgia.

Assim, qualquer ideia de revolução se torna absurda. A única justificativa para uma restruturação das relações do poder é o ressentimento de quem não tem a mesma qualidade moral da classe dominante. Esse caldo ideológico penetra o espírito do espectador porque, como diz o Mattelart, "o imaginário infantil é a utopia política de uma classe".

Quer dizer, ainda que seja divertida a piada do Juca - e faz sentido cômico, eu ri - uma análise mais profunda do filme acaba inviabilizando a metáfora do momento contemporâneo, simplesmente porque "O Rei Leão" é um produto burguês. E, como tal, ele vende a justificativa da existência da classe dominante. Você, que vai ao cinema ver "O Rei Leão", vai chorar pelo Simba, vai rir de Timão e Pumba, vai se divertir. Afinal, é incrível a capacidade da burguesia, conquistada em séculos de colonização cultural, de ganhar nossa empatia.

Mas, no fundo no fundo, "O Rei Leão" é o opressor mais uma vez fazendo o oprimido aceitar sua própria desgraça. Ou, nas palavras de Mattelart, participar da nossa "própria escravização ideológica".
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