27 março, 2018

Democracia: na trincheira ou na vala

Duas semanas depois do assassinato de Marielle, atentado a tiros contra caravana do ex-presidente Lula deveria ligar o alerta vermelho do grau de violência política que enfrentamos 

Perfuração de bala em ônibus onde estavam jornalistas que acompanhavam a caravana de Lula no Paraná. Foto: Daniel Giovanaz/Brasil de Fato


Um ex-presidente da República foi vítima de um atentado a tiros. Essa notícia deveria, no mínimo, gerar calafrios em qualquer pessoa que preze pela democracia. O que aconteceu nesta terça-feira foi mais grave do que nossa capacidade de análise histórica, estreita pelo calor do momento, é capaz de apreender.

Se a violência política começou a mostrar sua cara no golpe misógino e classista contra a presidenta Dilma, se o assassinato da vereadora Marielle Franco confirmou o grau de penetração institucional do estado genocida, o atentado contra Lula mostra que a infecção fascista já está alojada no corpo da sociedade.

A história testemunha que, quando não reagimos à altura da violência política, o obscurantismo impera. Derretem-se as instituições, o medo vira moeda política, criminaliza-se a disputa de ideias e a criatividade política, abre-se o caminho para ideologias totalitárias. Estamos descendo um poço, cujo fundo é forrado com os cadáveres da diversidade, do diálogo, do contraditório.

O fascismo não é uma ideologia nem uma falha moral. É uma violenta doença antissocial, que penetra as mentes dos indivíduos, anestesia a empatia e desumaniza definitivamente as parcelas vulneráveis da população. Corrói o tecido social.

O fascismo começa por atuar por debaixo dos panos, matando quem ninguém lembrava que estava vivo. O intelectual negro W.E.B. Dubois enxergou com clareza as raízes do nazismo na colonização africana. Os congoleses do século XIX foram as primeiras vítimas do que se tornariam os campos de concentração do Leste ocupado, assim como as pretas e pretos das periferias e as pessoas trans são o campo de teste do fascismo do século XXI. Depois de varrer os esquecidos da sociedade, a máquina do genocídio passa a matar símbolos, como Rosa Luxemburgo ou Marielle Franco. É neste estágio que estamos.

Perdemos a oportunidade de enfrentar o fascismo no ninho. Ele já está escancarado na manchete do Globo, que, de maneira leviana, trata o atentado como uma fábula petista; está no ímpeto moralista por procurar bodes expiatórios. O fascismo nos infecta como sociedade.

Por isso, não esperamos apenas que os fatos sejam apurados. Esperamos e lutamos por um despertar de consciência contra a violência política, que nos permita dizer às próximas gerações que nós fomos capazes de matar o fascismo antes da metástase institucional.

O que aconteceu hoje exige reação coletiva à altura. Se apoiamos ou não uma nova eleição de Lula é irrelevante. Hoje, lutamos pela sobrevivência da democracia e dos símbolos que a constroem. Ou nos encontramos hoje nas trincheiras ou amanhã nos porões.
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18 março, 2018

"Quem matou Marielle?", será que essa é a pergunta?



Quem matou a Marielle Franco foi o racismo. Foi o fascismo. Foi a polícia. Foi o exército. Foi o golpe. Foi o estado de exceção. Todas essas frases estão certas, ao mesmo tempo, se acreditamos que os problemas estruturais da sociedade só podem ser vistos numa ótica interseccional, que não simplifique nem hierarquize formas de opressão. Se você está buscando uma resposta única, exclusiva e excludente para "quem matou a Marielle?", você está analisando uma hashtag, um slogan, e não o profundo problema político, social e racial que este assassinato evidencia.

Basta ler o título de Mulheres, Raça e Classe, da Angela Davis, pra invalidar a discussão se o racismo foi mais determinante do que a condição de classe ou de gênero. "Mais determinante" não é a questão. Se você achar que ela é "só mais uma vítima" do genocídio da juventude preta no Brasil, você perde de perspectiva o fato de que este assassinato é uma escalada inédita do estado de exceção. Se achar que foi só o estado de exceção, você não explica por que morreu Marielle Franco e não Marcelo Freixo.

O estado sempre foi de exceção pro nosso povo? Sempre foi. Mas quando foi que conscientemente executaram uma negra/o eleita/o no meio da rua? O fato de ela ter sido a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro não quer dizer nada? Ou não teve nenhuma relação com a morte dela? A busca por uma resposta monolítica para esse assunto complexo elimina a distinção entre o que é o funcionamento automático da máquina genocida e o que é a ideologia genocidária. A máquina do genocídio (de qualquer genocídio da história) mata tanto porque não só é automática, mas funciona em escala industrial e de forma transversalmente distribuída pelo corpo da sociedade; quer dizer, não é só a polícia ou justiceiros que matam, tem o sistema de saúde, de educação, o Judiciário etc.

A máquina do genocídio x ideologia genocidária

O assassinato de Marielle não é automático, ele é um ato premeditado de apologia da ideologia genocidária. As mortes das outras vítimas do genocídio são políticas no plano objetivo, estrutural, macroscópico. O da Marielle, além de ser objetivamente e estruturalmente político, é subjetivamente político. Ou seja, ele impacta nossa retina para passar um recado direto: "vocês, pretas e pretos, pobres, de esquerda, não venham brincar de democracia no nosso quintal, porque nem a sua instituicionalização vai te proteger do assassinato em massa". A gente PRECISA entender como este recado opera na esfera ideológica, se quiser enfrentar o genocídio de fato.

Nosso povo tem a esperança de que, como indivíduo, se a gente chegar positivamente a uma esfera institucional, as nossas chances de virar estatística diminuem. O assassinato de Marielle é um atentado contra essa lógica psicossocial do povo oprimido, é um tiro no peito da nossa capacidade de sonhar. É terrorismo de Estado contra a população preta e pobre na esfera institucional positiva, que é diferente do terrorismo de estado que atua na esfera institucional negativa, por meio de cadeia e polícia.

E se a gente não for capaz de racionalizar isso, a gente vai absorver o terrorismo de Estado emocionalmente e não racionalmente. Ele vai ter cumprido seu objetivo.

Se aceitarmos a complexidade da situação, se pararmos de desprezar a interseccionalidade - que é o que faz essa busca pela causa monolítica -, vamos provavelmente chegar à conclusão de que "quem matou a Marielle?" não é a pergunta política fundamental. Objetivamente, essa pergunta é pro Judiciário. Porque, do ponto de vista político, quem matou Marielle foi o avanço do reacionarismo simultaneamente racista, classista, misógino e homofóbico num contexto de estado de exceção. A questão fundamental é quem vai continuar matando a Marielle. Provavelmente, quem vai continuar matando a Marielle é a guerra publicitária pelo seu cadáver ou, como tem se colocado de forma eufemista, a disputa de narrativa.

O autoritarismo da disputa de narrativa

Infelizmente, ela não acontece no plano racional, é um conflito pelo monopólio da manipulação emocional da população. Todos os lados usam a razão de forma autoritária para ver quem consegue impactar mais fortemente o coração da sociedade. E todas as armas dessa guerra foram disponibilizadas pela direita.

Afinal, o caráter contemporâneo do uso autoritário da razão para manipular o inconsciente coletivo com fins políticos ou econômicos - processo também conhecido como "publicidade", na faceta eufemista; "propaganda", na mais literal - é uma invenção do ministro da Propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbels. Enfrentar o fascismo exige brigar pelo restabelecimento do debate racional, usando, com profunda honestidade intelectual, o que a gente desenvolveu de teoria - neste caso, feministas negras como Angela Davis e Patricia Hill Collins caem como luvas.

Tanto quem diz que Marielle foi vítima exclusiva do racismo estrutural e do genocídio do povo preto, quanto quem diz que Marielle foi vítima exclusiva do golpe e do estado de exceção, está jogando um campeonato de várzea achando que é Copa do Mundo. Afinal, escreve a história quem vence. E a esquerda, preta ou branca, está perdendo. A narrativa sobre a Marielle vai ser escrita pela Globo, que já incorporou a pauta e parece querer esvaziar todo seu conteúdo político, com a construção do que eles chamam de "drama humano": a redução de problemas estruturais a problemas individuais. Nossa disputa simbólica é contra a direita - Globo, MBL etc.

A gente deveria estar se perguntando seriamente o que a Globo pretende com este "Marielle Presente" no intervalo da programação. Ou vocês esqueceram que, em junho de 2013, bastou um editorial pró-manifestações do Arnaldo Jabor para transformar uma legítima demanda por mais Estado em uma escalada fascista de dimensão nacional?

E o inimigo quer o quê?

Uma coisa é óbvia: eles querem a razão fora do jogo. Querem reforçar o aspecto emocional, despolitizador. Querem individualizar o drama para transformar o Estado de exceção e o genocídio em pautas secundárias. Ou seja, a Globo tem o poder de, com uma única manobra de autoritarismo emocional, marginalizar as duas bandeiras da esquerda que estão se digladiando na arena semi-pública dos grupos de WhatsApp.

Se este é o objetivo narrativo, a gente precisa se perguntar qual o objetivo político final deles. Eles querem um aprofundamento da intervenção militar, que leve à determinação de um estado de emergência, que suspenda as eleições e transforme o Brasil numa gestão militar de fachada civil? Ou eles pretendem botar o fardo nas costas do governo federal para esvaziar o movimento de sua potência política, criar uma espécie de "sou da paz" e capitanear uma volta da democracia neoliberal nos braços do povo? Uma combinação dos dois, com agendas de curto, médio e longo prazo? Estamos especulando.

Seja qual for a intenção do inimigo, é urgente que a gente aprenda a estabelecer uma comunicação social horizontal, de razão para razão, de cabeça para cabeça. A gente precisa conseguir acabar com esta forma de comunicação autoritária, que coloca a razão num lugar de privilégio para manipular a psicologia social pela emoção. A gente precisa romper com o formato nazista de comunicação. Afinal, se o meio é de extrema-direita, com base em quê vocês acham que o resultado vai ser favorável à esquerda, seja ela preta ou branca?

Foto: Mídia Ninja
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