29 abril, 2014

Dá linha, Princesa Isabel, não somos macacos



Não somos todos iguais nem somos todos macacos. No nosso mundo, uns são muito mais macacos do que outros. E, embora declarar-se negro seja uma decisão política - Malcolm X já dizia que ninguém nasce negro, mas torna-se negro conforme toma consciência de seu lugar no planeta -, declarar-se macaco não é. Não me venha dizer, branco rico da agência de publicidade, que você se autodeclara macaco. Ninguém se autodeclara macaco, você é declarado macaco por alguém. E todo preto sabe a dor que isso causa quando acontece.

Eu fui declarado macaco pela primeira vez há mais de 20 anos e me lembro disso até hoje. Foi a Polícia Militar do Estado de São Paulo quem me presenteou com esta "posição política antirracista". E ela veio acompanhada de um tapa na cara. Eu não tinha ainda 11 anos. Esse engajamento primata voltou várias vezes e isso nunca foi libertário. Muito pelo contrário, quem é vítima do racismo sabe que isso corroi um pedaço da alma, abre um buraco que não fecha.

Você sabe, branco, o que é crescer com o bombardeio publicitário da sua inferioridade? Ouvir de todos os lados que você é incapaz? Que você é feio? Que você é escravo? Sim, porque desde crianças aprendemos que os pretos vieram para o Brasil como escravos e não que eles foram escravizados. A diferença parece sutil, mas não é. É fácil a criança negra naturalizar essa posição de escravo. Afinal, ela olha ao redor dela e todo mundo que é que nem ela faz os trabalhos que sobraram da escravidão, trabalho que branco nenhum quer fazer. Isso quando tem trabalho.

Na televisão, quem se dá bem é o branco. Bonito, que aparece na propaganda, é o branco. O espaço do preto é o noticiário policial. O espaço do preto é um pelourinho como aquele do aterro do Flamengo; o espaço do preto é o subespaço que o mundo branco nos concede. O espaço do preto é o espaço da subclasse, da subespécie. E o que é a subespécie do ser humano? O macaco.
400 anos chamando a gente de subraça. Se pregamos orgulho da raça, dizem que raça não existe.

Eu não abraço essa patifaria. Até porque não tem novidade nisso. Toda a vez que o negro conquista alguma coisa, vem um branco pra incorporar essa conquista e diminuir seu potencial transformador. É que nem esse negócio do conceito de raça. Passaram quatrocentos anos chamando a gente de subraça. Convenceram os pretos de que eles eram subraça. Quando resolvemos promover o orgulho da raça, o black power, o poder para o povo, vem branco dizer que raça não existe.

Do ponto de vista biológico, não existe mesmo, a gente já tava ligado nisso há 10 milênios. Mas vocês passaram quatro séculos construindo um conceito sociológico de raça para justificar a escravidão. E vocês basearam a sociedade e a economia nisso. Agora, não adianta falar que somos todos iguais para sustentar a diferença.

Queremos cotas, sim, porque nossos espaços foram sempre negados. Precisamos de um tratamento diferenciado emergencial, para que possamos acabar com essa desigualdade. Mas quando a gente exige reparar as diferenças, os mesmos que instituíram a diferença vêm com essa de que somos a mesma coisa "do ponto de vista biológico". E tudo continua igualmente diferente.

Aplausos para a atitude orgulhosa do Daniel Alves, que não se deixou intimidar pelos racistas. Mas a incorporação dessa atitude pelo sistemão branco não é bem vinda porque não traz nada pros pretos. Pelo contrário, depois de um século de tentativas do Movimento Negro de desconstruir esse estereótipo de subespécie, vem o branco negar a história. Esse "somos todos macacos" é reacionário: corta a discussão para esvaziar nossa luta mais uma vez. A gente já conhece isso aí. Dá licença, Princesa Isabel, mas aqui não. Nosso dia ainda é 20 de novembro. Nossa história ainda é de luta e não de concessão.
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