23 novembro, 2016

Um negro chamado ninguém

Não deixo de ser negro ao falar de temas que não tocam diretamente o negro. Só deixo de ser ouvido.


Primeiramente, além do #ForaTemer, meu lugar de fala: sou negro, sou de esquerda, homem heterossexual (até onde eu sei), de classe média, trabalhador da notícia (para me diferenciar do que se convencionou chamar de jornalista), mestre em literatura, descendente de escravos e nordestinos, vítima de racismo direto e institucional, culturalmente brasileiro, politicamente apátrida e antinacionalista. E escrevo para exigir o direito de não-ser.

Não falo da obrigação de não-ser imposta verticalmente àqueles cuja voz a sociedade descarta, mas do direito de me manifestar fora de meu lugar de fala. O nome do meu site é a reivindicação populista de um lugar de fala, é uma leitura radical da formação afrodescendente de minhas influências. "Afroências" é um clamor por aceitação, é a contradição primordial, fundadora, deste espaço. É o fóssil de minha tentativa de pertencer a um lugar de fala, um lugar negro, que me colocasse ao lado daqueles que tenho como ídolos.

Ser negro é não ter lugar nem fala; não por opção, mas por imposição. Nos impuseram o não-lugar da cultura, arrancada pela escravidão; o não-lugar dos nomes vilipendiados; o não-lugar dos corpos dilacerados; o não-lugar do desemprego, da ausência de direitos. É apenas normal que reivindiquemos um "lugar". O problema é que reivindicamos um salvo-conduto para os espaços tradicionalmente ocupados pelo branco liberal. Eu quero implodir o próprio lugar e sobrar só com a fala - desta vez, por opção e não por imposição.

Isso significa destruir os espelhos, a representatividade, a própria individualidade e exigir o direito de ser ninguém, de ser um problema real para um sistema cuja torre de opressão é fundada na construção do indivíduo e de seu direito inalienável de propriedade. Não quero propriedade de nada, nem do meu próprio nome. Quero ser um pirata de mim mesmo, um ninguém que gera pensamentos. Se nosso sistema econômico foi fundado na escravidão, quero a abolição não só da escravidão, mas da própria lógica que a possibilita. Ou seja, quero revogar a ideia de propriedade, seja de uma pessoa, seja de um discurso. Exigir um "lugar de fala" significa exigir a propriedade sobre um discurso. Quero que o discurso não pertença a ninguém. Quero o direito de ser ninguém.
"Ponha-se no seu lugar" é "reivindico meu lugar de fala" conjugado no imperativo.

Essa posição é perigosa: é muito mais fácil se legitimar a partir de seu lugar de fala. Todo mundo conta com a propriedade de um lugar. Se o branco de direita quer nossa volta à senzala, o branco de esquerda espera que nosso lugar legitime a fala dele. Nos dois casos, "ponha-se no seu lugar" é "reivindico meu lugar de fala" conjugado no imperativo.

Quero falar sem lugar, quero falar sem gueto e quero cota não de 10%, mas de 100% no lugar de fala do branco. Quero que os homossexuais tenham cota de 100% no lugar de fala dos heterossexuais. Quero que as mulheres tenham cota de 100% no lugar de fala dos homens. Quero que o lugar de fala se exploda e ceda espaço ao direito verdadeiramente democrático de falarmos de qualquer lugar, de qualquer assunto - mesmo daquele que pertence à esfera de quem nos oprime.  Nós, oprimidos sob diversos prismas, só seremos verdadeiramente perigosos quando enxergarmos primeiro a opressão e depois o prisma. Do contrário, vamos virar a black face do white power, como foi Barack Obama. Porque, no fundo, quando se diz "lugar de fala", a palavra-chave é "lugar" e não "fala".

Por isso, nossa arma é falar de tudo, ocupar todos os lugares e não nos restringir ao que se espera de nós. Não quero denunciar só o racismo, muito menos numa perspectiva individual. Não quero falar que apanhei da polícia pela primeira vez aos dez anos nem dizer que, tantos idiomas e diplomas depois, ainda me mandam subir por elevador de serviço. Quero discutir política europeia, sim. Quero discutir filosofia clássica, sim. Quero discutir macroeconomia, sim. Sim, quero discutir tudo sem que o filtro seja esse nada que é tudo que cabe em "meu lugar de fala". Não deixo de ser negro ao falar de temas que não tocam diretamente o negro. Só deixo de ser ouvido. Mas prefiro a surdez dos opressores ao sectarismo dos oprimidos.

PS.: Esse texto é contraditório em si. Ele só possibilita criticar o lugar de fala porque reivindica o lugar de fala. E eu tenho certeza que ele vai funcionar não por causa da crítica radical, mas por causa da reivindicação do lugar de fala. Todo mundo vai ler o texto e entender o manifesto porque sou um negro negando meu lugar de fala.
Compartilhar:

04 novembro, 2016

Túnel no fim da luz

Como se enfrenta a depressão intelectual que emana da fumaça narcótica da fogueira de livros? Como se descobre a beleza do pensamento em meio aos escombros do sonho democrático? Onde se busca o pedestal da Justiça, quando a liquidez da exceção se sobrepõe às fundações do direito? 



É impressionante o Museu Histórico da Alemanha, em Berlim. Ele retraça a vida cotidiana e política de uma cidade que viveu múltiplas fundações, uma cidade obrigada a se reconstruir de baixo a cima pelos canhões e canetas de autoritarismos diversos. Quando entramos na sala modernista que introduz o século XX, nos deparamos com a ebulição de uma sociedade que se acreditava, pela força da tecnologia e da explosão criativa, destinada a grandes feitos.

Um primeiro fio de gelo corre a espinha quando nos deparamos com o Manifesto Futurista de Filippo Marinetti, exposto em sua impressão original e na versão francesa, que se tornaria célebre na capa da edição de 20 de fevereiro de 1909 do diário conservador Le Figaro. Olhos treinados como os nossos, que as trincheiras, campos de morte e gulags do século XX se encarregaram de engolir, captam rapidamente as palavras-chave do texto, como se fossem hyperlinks para o holocausto: "guerra", "patriotismo", "higiene militar".

Conforme descemos a espiral do autoritarismo, multiplicam-se as legendas: "desaparecido", "exilado", "executado" Depois de glorificar o "escarnecer da mulher", Marinetti promete destruir "os museus, bibliotecas, academias de todo tipo". Poderia ter sido mais um entre os muitos manifestos artísticos daquela era profícua, se não caísse em triste circunstância histórica. Mal sabia ele o quão suja e rápida se faria a higiene militar. Primeiro, na mais mortal de todas as guerras, em que uma geração jovem (não só europeia, mas do planeta inteiro) foi literalmente afundada em lama tóxica.

Apesar da importância histórica da Primeira Guerra, a curadoria do Museu é sagaz ao atalhá-la em uma sala curta, encerrada pelo tratado de Versalhes, que colocou a Alemanha de joelhos. Apresenta-se então um soldado austríaco do fronte alemão, popular entre seus combalidos camaradas de trincheira. Seguro de seu dote para a retórica, ele estuda o texto da rendição e passa a pregar a reascensão mística de um espírito alemão original, purgado do que ele patologicamente acusa todos os males: o "lobby judeu".

Amplamente menosprezado pelas demais forças políticas, o ex-soldado Hitler chega ao posto de chanceler e seu partido Nacional Socialista vira força majoritária no Parlamento alemão. E aí, temos que mudar de andar no museu. Seguem-se quatro lances de escada descendente. A parede frontal do primeiro lance é decorada de artistas, filósofos, empresários, políticos, juristas, poetas e intelectuais da cena berlinense no início dos anos 30. Conforme descemos a espiral do autoritarismo, os retratos começam a escassear, substituídos por legendas: "desaparecido", "exilado", "executado".

Ao chegar no térreo, já não sobram mais do que meia dúzia de retratos. A sinfonia wagneriana que nos acompanhava desde a primeira guerra cede lugar a uma ambientação sonora de murmúrios, palavras de ordem militares e crepitações. Estamos num túnel escuro, cuja única luz, lá no fundo, repousa sobre o último retrato: Adolf Hitler nos encara de cima pra baixo, imponente. Conforme nos aproximamos do führer, percebemos que, debaixo das grades que cobrem o chão, há um interminável lençol de sapatos. Estamos em pleno Holocausto.

O pensamento morreu ou foi exilado. O Judiciário, missionário, serve à causa paranoica do expurgo nacional de judeus, comunistas, deficientes, homossexuais. A indústria produz para a guerra e desenvolve tecnologias de assassinato em massa. A ciência torna-se tóxica e misantrópica. A política padece sob a voz de um homem só. Estamos no porão da história alemã, estamos no porão da humanidade. Somos insensíveis, somos contra-humanos, somos coletivamente suicidas e distópicos.

Não estamos face a um novo Holocausto. Mas vivemos uma ruptura histórica impulsionada por uma Crise comparável a 29 Prever um genocídio em escala industrial no horizonte atual seria colocar o carro na frente dos bois. Por mais que a crise migratória tenha transformado o Mediterrâneo no tumbeiro do século XXI; por mais que o Oriente Médio tenha sucumbido às ruínas sob as ambições de seitas apocalípticas e neoliberais sedentos de petróleo; por mais que o assassinato de minorias seja o modus operandi das polícias americanas (do Brasil aos Estados Unidos, com uma longa escala mexicana); por mais que o Estado turco tenha se convertido na ferramenta genocidária de um financista fanático como Recep Erdogan; por mais que Israel faça da Faixa de Gaza um showroom de aparatos repressivos para exportação; por mais que fundamentalistas cristãos norte-americanos tenham se convertido em lobistas pelo assassinato de homossexuais em Uganda; por mais que uma grave distorção da luta anticolonial nigeriana tenha gerado o Boko Haram... Por mais que possamos, enfim, elencar incontáveis signos de misantropia mundo afora, não estamos face a uma máquina de morte das proporções e do rigor metodológico do Holocausto.

Mas não podemos ignorar que vivemos um momento de ruptura histórica impulsionado por uma crise econômica com C maiúsculo cujo único paralelo na história do capitalismo foi o crash de 1929 - justamente aquele que reuniu as condições para a ascensão democrática do fascismo. E, como naquela época, é inegável que a paixão política está nas mãos da direita mais raivosa. Quem, em sã consciência, pode esperar que, hoje, o tão sonhado colapso do capitalismo abra espaço para um mundo mais justo, solidário e igualitário? Como diz o sempre preciso Yanis Varoufakis, o que se vislumbra hoje pela janela do futuro "faz o filme Matrix parecer um documentário".

No Brasil pós-golpe, sintomas de uma infecção fascista, que se alastra dos três poderes à população em geral (e vice-versa), são claros e evidentes. Das prisões arbitrárias à normalização do assassinato de negros, jovens pobres e mulheres sob a narrativa fluida do inimigo interno, é evidente que nossa insensibilidade atinge níveis perigosos. Some-se a isso a descrença na representação política, simbolizada pela abstenção calamitosa às eleições municipais de outubro de 2016. Descrença que é retroalimentada por um governo que, não-eleito, sequer se preocupa em fingir alguma representatividade: enterra goela abaixo da população as mais impopulares de todas as pautas da Nova República.
Temos coragem de exigir, para além do fim da PM, o fim do sistema prisional? Temos coragem de pedir mais impunidade?
Se não bastasse, a representatividade política não foi a única - e talvez nem a maior - vítima do golpe parlamentar. As próprias instituições da República parecem se desmilinguir. No domingo que antecedeu as eleições municipais, um homem que se apresenta como ministro da burocracia parasitária que se autodenomina governo subverteu princípios básicos da Justiça para anunciar a perseguição de seus adversários políticos pela Polícia Federal. A prisão de Antonio Palocci, na mesma cidade e apenas um dia depois do pronunciamento do pseudoministro, deixou evidente que a Justiça e o aparato repressivo se fundiram numa coisa só. Se não dá mais para falar em independência do Judiciário, não dá mais para falar em independência entre os poderes. Logo, não dá mais para falar em Estado democrático de direito no Brasil. O que vivemos é uma psicopatologia coletiva auto-imune, que cria um ciclo em torno de si mesma ao transformar o próprio tecido social em seu principal inimigo, assim como fez a Alemanha nos anos 30. E a população reage entre punitivismo e apatia.

Precisamos tirar o Brasil da letargia da insensibilidade, um desafio hercúleo se considerarmos que este povo foi obrigado à insensibilidade por 500 anos da mais cruel opressão. Depois de tanta brutalidade, é natural a população ser mais seduzida pela promessa de vingança que pela promessa de Justiça. É missão nossa tirar lenha dessa fogueira. Precisamos nos indignar juntos por todos os injustiçados, por todos os oprimidos, por todos os presos. Não podemos pedir mais punição para nossos inimigos e menos para os nossos amigos; precisamos pensar uma sociedade capaz de se reeducar eticamente, alforriada da catarse moralista da punição. Temos coragem de exigir, para além do fim da PM, o fim do sistema prisional, como defende a neo-abolicionista Angela Davis? Temos coragem de pedir mais impunidade?

Precisamos repensar nossos conceitos mais elementares: o que é riqueza? Por que medimos nossa produção a partir do PIB, um índice que despreza a contrapartida social dos investimentos? Temos muito estudo pela frente. Não podemos nos contentar com a comunicação por memes e textos de 140 caracteres. Para que(m) serve o crescimento econômico, num momento em que nossa atividade ameaça a própria sobrevivência da Terra? Por que não distribuímos riqueza, já que produzimos mais excedentes que todas as gerações anteriores? Por que todas as pessoas não têm uma renda mínima? Por que se explora petróleo? Existe ecologia, feminismo, movimento negro e LGBT dentro do capitalismo? O que é liberdade econômica? Qual o fundo ideológico e geopolítico da nossa posição atual? Por que existem paraísos fiscais? Por que existem bancos? Por que nunca abolimos a escravidão?

Temos muito estudo, muita troca de ideias pela frente. Não podemos nos contentar com a comunicação por memes e textos de 140 caracteres. Esses veículos funcionam tão bem para a publicidade porque são intrinsecamente capitalistas. Faz parte da nossa missão civilizatória desconstruir a absorção publicitária da realidade porque ela é acrítica em si. Mais do que isso, ela é anti-crítica, já que faz suas acepções com base em estudos que determinam com muita precisão os preconceitos médios da sociedade. Não me impressiona nada o fato de que um terço dos nossos homens acha que a vestimenta de uma mulher pode justificar um estupro; como mostram as propagandas de cerveja, feitas sob rigoroso targeting, a maioria dos homens vê as mulheres como objetos descartáveis.

Esse processo se retroalimenta: a propaganda publiciza a mediocridade, que retorna à sociedade como um valor. Quando um conceito crítico é incorporado à sociedade ao ponto de ganhar viabilidade mercadológica, a publicidade trata de subtraí-lo de seu componente crítico e explorar seu potencial comercial. É o que acontece com a representação do negro ou do homossexual, por exemplo. Como hoje eles têm valor mercadológico, eles são engolidos, despidos de suas contradições (as contradições são essencialmente críticas) e atirados de volta ao público no formato de commodities sem alma.

Precisamos ter alma. Precisamos gerar dúvidas e não certezas. É hora de estudar e gerar contradições. Afetos e contradições são o antifascismo em si. Um fascista é aquele cuja certeza paranoica bloqueia a empatia. Só se chega a esse grau de certeza, a esse nível de desconstrução de contradições, por meio do pensamento dogmático. É por isso que, para se instaurar, o fascismo exige um alto grau de transcendência. O pensamento fascista tem de ter estrutura religiosa. Adolf Hitler sabia disso tão bem, que construiu uma poderosa mística em torno de objetos e rituais sagrados.

Tinha, por exemplo, o ritual da Fahnenweihe (algo como "consagração da bandeira"), quando o führer pessoalmente benzia todas as novas insígnias nazistas com uma bandeira ensanguentada. Em tese, o sangue pertencia a um dos homens da SA mortos durante a tentativa fracassada de golpe de estado comandada por Hitler em novembro de 1923. Nunca se soube se a bandeira era mesmo original, mas isso tanto fazia: o importante era a sacralização e ritualização do objeto.

O Brasil de hoje, que é descrente na política e tem no discurso publicitário um filtro preferencial de leitura do mundo, oferece o repertório cultural e a configuração mental acrítica perfeitos para a instalação de uma teologia política fascistoideSe alguém teve a ilusão de que o golpe reforçaria a coesão das esquerdas, pode esquecer. Retrocesso gera retrocesso. - complementada pelo discurso maniqueísta de uma influente franja das igrejas neopentescostais de matriz estadunidense. Memes que representam a direita como Jesus e a esquerda como o demônio exemplificam um processo de re-significação teológica dos antagonismos políticos. Certas igrejas evangélicas transmutam analogicamente ideologia neoliberal - empreendedorismo, desconstrução do Estado, individualismo - em discurso religioso. Elas leram Eduardo Galeano melhor do que nós e teorizaram o Deus-mercado. Dentro da lógica dogmática, isso significa que a justiça social, a diversidade, o igualitarismo etc. foram literalmente para a casa do diabo. Como vamos lutar contra Deus?

Essa representação binária do mundo funciona justamente porque a vida não é binária, mas contraditória o tempo todo. Você é morto pelo Estado sem ter cometido crime; você ganha um salário mínimo e paga mais imposto que um bilionário; a parte que você paga não se reverte em nada e você ainda tem que pagar uma segunda taxação pra milícia ou crime organizado; você terceiriza sua saúde para um médico que não te atende; seu filho rouba uma bolacha e é linchado; o filho do Eike Batista explode um trabalhador e sai de boa.

Sem a possibilidade de um desenvolvimento teórico e intelectual profundo, é apenas natural que surja na sociedade a necessidade de uma explicação atenuante de contradições tão radicais. É necessária uma estrutura transcendente que ordene esse repertório tão vasto de paradoxos. Contradições são terreno fértil para utopias. O problema é que esse espaço é atualmente cooptado pela extrema-direita. É preciso entender como o niilismo pós-morte da representatividade se converte nessa psicopatologia fascista e administrar à sociedade uma bela dose de utopia.

Novos horizontes de sonho são nosso antídoto, já que só a flor do fascismo brota da distopia. Se alguém teve a ilusão de que o golpe no Brasil reforçaria a coesão das esquerdas, pode esquecer. Retrocesso leva a mais retrocesso. E temos uma burguesia, armada de meios de comunicação de massa num país semi-alfabetizado, que promete eleger presidente um homofóbico misógino orgulhosamente favorável à implosão do Ministério da Cultura. Ou seja, precisamos nos levantar antes que o autoritarismo arranque nosso direito à imaginação.

No imaginário social, há campo para o resgate da utopia. Afinal, as únicas duas forças ideológicas que crescem entre os brasileiros hoje são absolutamente utópicas (ou distópicas, já que são o anverso reacionário da utopia): o discurso anticorrupção, envenenado por ideologia neoliberal; e o religioso, que prega vida depois da morte, a maior de todas as utopias.
Google, Twitter, Facebook - Quem produz o conteúdo deles? Por que não temos todos uma gorda parcela de suas ações?
Esse avanço distópico tem boa dose de culpa nossa. Não só no Brasil, mas no mundo, a esquerda majoritária abandonou a ideia de transformação radical da sociedade. Aceitamos o consenso de Washington e a teoria do fim da história e passamos a nos ver como gerentes privilegiados de um futuro inexoravelmente capitalista. Acreditamos que a social-democracia era o sinal de que o capitalismo poderia ser mais ou menos humano, se reduzíssemos gradualmente as contradições, se varrêssemos a luta de classes pra baixo do tapete. Faltou dialética no nosso olhar. Faltou encarar a social-democracia como uma ferramenta econômica, política e ideológica do capitalismo para disputar corações e mentes com o bloco comunista.

Com a queda do muro de Berlim, o capitalismo se desonerou de seu compromisso com o ser humano. Aceitou que tudo funcionaria melhor se dois terços da população simplesmente desaparecessem. Sem o contraponto ideológico comunista, o "lado humano" do capitalismo ficou obsoleto; virou propaganda sem público alvo. Começou um processo enlouquecido de concentração de renda, a financeirização criou mecanismos virtuais de geração de lucro sem valor, surgiram formas sofisticadas de escravidão, como a praticada por empresas como Google e Facebook - afinal, quem produz o conteúdo deles? Por que nós não levamos todos uma gorda parcela de suas ações?

Mesmo diante de tudo isso, achamos que conseguiríamos domar a besta por meio de um precário equilíbrio entre interesses classistas. Bastou uma crise econômica para que o equilíbrio implodisse e os ricos colocassem de volta na mesa a nossa principal carta: a luta de classes. Se a gente esqueceu desse conceito marxista básico, eles não. E querem aproveitar esse momento para ganhar de vez.

Como se enfrenta esse tipo de depressão intelectual, que emana da fumaça narcótica da fogueira de livros? Como se descobre a beleza do pensamento em meio aos escombros do sonho democrático? Onde se busca o pedestal da Justiça, quando a liquidez da exceção se sobrepõe às fundações do direito? Vamos ter que encontrar essas respostas. Ou seremos tragados pelo ralo do fascismo.
Compartilhar:

Temer na ONU: até que nem tanto esotérico assim

Temer fingiu que somos o país do futuro. Só quem vê futuro no Brasil pós-golpe é o capital improdutivo. Mas talvez esse seja o público alvo de Temer. Fingir que está tudo bem, quando todo mundo vê que não está, significa relegar a democracia ao papel secundário de administradora de aparências. 


Foto-ilustração de Joana Brasileiro sobre imagens de Ricardo Stuckert/ Instituto Lula; Beto Barata/PR/fotospublicas


O discurso de Michel Temer na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas na terça-feira (20) mereceria um estudo profundo. Não vale a pena discorrer longamente sobre a incoerência estrutural do conteúdo, porque isso já foi muito bem feito pela Helena Borges no Intercept. Basta dizer que ele tenta vender a ideia de que tudo está normal e o Brasil cumpre, internacionalmente, o mesmo programa que nos colocou no mapa da diplomacia durante os governos petistas.

Michel Temer parece querer recuperar a credibilidade política na esfera internacional à la Pollyana, fingindo que tudo vai bem. Suponhamos (apenas suponhamos) que o autor deste texto refutasse a tese do golpe, pensasse que o Judiciário brasileiro faz um trabalho isento de combate à corrupção, que a imprensa é livre e comprometida com a imparcialidade. Ainda assim, se o mundo suspeita que há algo de podre no reino da Dinamarca, cabe aos dinamarqueses se explicar. E pesam muito mais suspeitas sobre o Brasil do pós-golpe que sobre a Dinamarca shakesperiana.

Quem falou? Pra ficar na França, Le Monde, Le Figaro (diários conservadores franceses viraram leitura trotskista perto da grande mídia brasileira), Libération, membros diversos do Legislativo francês e daí por diante. Até o New York TimesTemer trata a ONU como extensão do quintal midiático onde os golpistas amarraram seu cavalinho de Troia. olha de rabo de olho para esse "impeachment". Na China, ele fingiu que tudo andava normal no G20, fez cara de paisagem para a foto oficial, como se não tivesse sido colocado de canto, como mau aluno de escola sem partido.

Diante de delegações que deixavam a sala em denúncia a sua ilegitimidade, Michel Temer subiu à Tribuna da ONU para falar do Brasil atual como se estivéssemos na era Lula, quando os problemas mais graves se passavam porta afora e o mundo via nossa jovem democracia com esperança. Dizer hoje que, "aí na terra de vocês, tem guerra, xenofobia, nacionalismo 'exacerbado' (como se nacionalismo "contido" não fosse uma dinamite com o pavio apagado)" e posar como um farol de distribuição de renda, acesso à habitação, educação inclusiva e relações externas altivas é tratar a classe política internacional como uma extensão do quintal midiático onde os golpistas amarraram seu cavalinho de Troia. Em casa, ele pode falar o que quiser, que "umas 40 pessoas" querem vê-lo pelas costas.

Lá fora, a coisa muda. O mundo político não vê o Brasil com os olhos esperançosos da década passada. Basta reparar no grau de hesitação de chefes de Estado de todo o planeta em reconhecer isso que a gente está obrigado a chamar de "governo". Só quem vê futuro no Brasil pós-golpe é o mais distópico dos setores econômicos: o capital improdutivo. Mas talvez esse seja o público alvo de Temer quando trata a mais alta esfera da política mundial como um palco em que se encena a normalidade. Fingir que está tudo bem, quando todo mundo vê que não está, significa relegar a democracia ao papel secundário de administradora de aparências. E assim, sinalizar ao "mercado" (que opera por meio de aparências esotéricas de normalidade) que não há razão para se preocupar com a instabilidade gerada pela pluralidade de opiniões.

Não é novidade. Essa hipocrisia se aproxima do modus operandi dos gerentes Rigor fiscal é impopular? Para um corpo político que só se vê como gerente de interesses privados, o povo tanto faz. (chamar de chefes de Estado é exagero) da União Europeia que, contra toda e qualquer lucidez, seguem impondo cinicamente, por meio de medidas de austeridade, o ônus da crise financeira aos mais pobres. Só os bancos, responsáveis pela quebra da economia global, se beneficiam dessa política. E a população em geral é abertamente contrária. Mas para um corpo político que não se vê como mais do que administrador eleito de interesses privados, tanto faz o que pensa a população em geral. Bom exemplo disso é a maneira como a Comissão Europeia esmagou a tentativa da Grécia sob o Syriza de adotar medidas anticíclicas como forma de assegurar, no médio prazo, a renegociação e eventual pagamento de sua dívida astronômica. Nas excelentes palestras que faz pelo Velho Continente para promover seu Movimento pela Democracia na Europa (DiEM25), o ex-ministro grego das Finanças Yanis Varoufakis conta algumas anedotas elucidativas.

Em sua primeira reunião com a Troika de credores da Grécia (FMI, Banco Mundial e Comissão Europeia), Varoufakis fez uma proposta moderada que, como ele mesmo diz, "qualquer advogado de falências de Wall Street faria". Ele sugeriu duas medidas para evitar um novo empréstimo, cujas contrapartidas draconianas reduziriam o PIB do país em 28% e obviamente impediriam que a dívida fosse quitada: a reestruturação das formas e prazos de pagamento e a retomada do investimento produtivo, de onde viria a renda para reembolsar os credores.

Varoufakis construiu a argumentação de forma igualmente moderada: "Existe um programa que foi assinado pelo governo anterior e sei que um Estado exige continuidade. Um novo governo não pode simplesmente chegar e começar do zero [viu, seu Michel Temer?]. Mas o povo grego nos deu o mandato justamente para contestar este programa. Então, temos dois conceitos que se chocam de frente aqui: continuidade e democracia. Nessas circunstâncias, o que podemos fazer? Encontrar um campo comum para as negociações. Em outras palavras, fazer concessões". Antes de terminar a frase, o chefe das Finanças gregas foi interrompido pelo seu colega alemão, Wolfgang Schauble, que soltou a seguinte pérola: "Não podemos permitir que votos mudem um programa econômico".
O golpista busca lugar à mesa global. Não pela porta da frente, mas pelos fundos - o que não é novidade para Temer.
Quer dizer, não podemos permitir que algo tão insignificante quanto a democracia contrarie interesses do capital financeiro. Como diz o próprio Varoufakis, eles querem tirar o "demos" (povo) da democracia. Em outra ocasião, tomando café depois de longas horas de reunião, o ministro grego ouviu da chefona do FMI, Christine Lagarde: "Você tem razão, nosso programa vai agravar a crise grega e não vai recuperar a capacidade de investimento do país. Mas você tem que levar em conta que investimos muito capital político para convencer todo mundo a aceitar a austeridade fiscal".

Talvez, com seu discurso de normalidade, o eterno interino tente se aproximar deste grau de hipocrisia para encontrar seu lugar à mesa dos players globais. Não pela porta da frente, como fizemos nos bons tempos de Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia, mas pelos fundos - o que, cá entre nós, não é novidade para Michel Temer. Ele se ausenta de oferecer a resposta política que a desconfiança internacional exige porque sabe que seu único lastro com o poder - e quiçá com a própria política - é o capital. Assim, Temer faz uma mímese esvaziada do Brasil que encantou o planeta nos últimos anos. Por trás, oferece ao capital improdutivo exatamente o que ele quer: a política como farsa necessária à primazia de interesses privados.

Esse tipo de esquizofrenia é muito comum a quem chega ao poder pela via golpista. O problema é que a doença virou epidemia em 2008, quando o capital improdutivo iniciou sua ofensiva para sequestrar as esferas executivas da política. E, como se vê pela triste deriva europeia, não são só governos ilegítimos que sofrem dela.

A nossa única arma contra essa ofensiva da distopia, da ideia de que apenas uma parte privilegiada da sociedade tem direito a ter direitos, é a utopia da distribuição, tanto de poder quanto de renda. Como bem percebeu Varoufakis, é reinserir o demos na democracia, em todos os lugares, em todas as esferas. Entramos em uma luta pelo direito à participação. O discurso de Temer, por mais absurdo que pareça, mostra que este governo está consciente de que a guerra pelo controle da política está em curso. Eles escolheram um lado e estão tentando divorciar poder e povo. E nós? Estamos dispostos a radicalizar a democracia?

Matéria publicada pelos Jornalistas Livres, a 22 de setembro de 2016
Compartilhar:

Porque a comparação que Veja faz de Lula e Khadaffi não tem sentido



Vinte de outubro de 2011. As forças da Otan, lideradas por uma esquadra de Rafales franceses, atacam a cidade líbia de Sirte, onde se esconde Muammar Khadaffi, panafricanista convertido em ditador sanguinário. Khadaffi tenta fugir em um comboio de carros mas, mal cruza a fronteira da cidade, é interceptado por rebeldes que, auxiliados pela Otan, formariam a base de um tal de governo de transição que hoje continua lá, mas não é transição nem governo.

Durante os próximos quatro dias, o corpo destroçado de Khadaffi apodreceria em praça pública. Autoridades internacionais, do então presidenciável francês François Hollande à então secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, festejariam o fim do "reinado de terror". A notícia parecia boa para a comunidade internacional: Khadaffi havia sido morto em fogo cruzado. Não soava estranho que seu corpo fosse vilipendiado, considerado o sofrimento que o autocrata de 125 bilhões de dólares (era essa sua fortuna estimada) causara a sua própria população.

Se três anos antes, Nicolas Sarkozy fechava as margens do Sena pra que Khadaffi pudesse passear tranquilo pelas águas de Paris, desde que ficou decidida a desastrada intervenção internacional na Líbia, a grande mídia se empenhou na construção de um monstro. Surgiram relatos de câmaras de tortura para opositores políticos em porões de Benghazi; todo mundo tinha a certeza de que o ditador havia estabelecido o estupro de crianças como arma política.

Matérias de outrora, como as que discorriam longamente sobre a habilidade de Khadaffi em usar programas sociais para converter o lucro de suas enormes reservas petrolíferas no maior Índice de Desenvolvimento Humano do continente africano, simplesmente desapareceram. Sumiram também os elogios ao fato raro de que, sob a ditadura, negros migrantes da África subsaariana encontravam vida digna em solo líbio. As contradições, que são o tecido de qualquer relação social humana, deixaram de interessar ao consórcio político-corporativo-midiático internacional. Emergiu uma narrativa uníssona, cujo objetivo - também uníssono - era destronar o caudilho, custasse o que custasse.

E uma guerra civil de poucos meses, agora concluída com o cadáver de Khadaffi, parecia um baixo preço a se pagar. O problema é que, na era digital, as narrativas simplistas têm cada vez menos fôlego. Celulares do que a imprensa já chamava de "freedom fighters" - o conglomerado de jihadistas que paradoxalmente instauraria a democracia na Líbia - gravaram os últimos momentos do ex-líder "populista".  Primeiro, morreu a história do fogo cruzado. Khadaffi foi retirado de seu comboio com vida e executado com uma bala na cabeça.

Detalhes de novos vídeos deixavam a história mais macabra. Antes de morrer, ele foi linchado. Coberto de sangue, arrastado pela paisagem desértica da periferia de Sirte, ele recebe uma chuva de socos, pontapés e empurrões. E o mais perturbador ainda estava por vir: Khadaffi foi estuprado seguidas vezes com uma faca de combate BKT, de fabricação americana. Tudo filmado por regozijantes "defensores da democracia". A ONU pediu uma investigação sobre as circunstâncias da morte de Khadaffi, conforme a comunidade internacional começava a se questionar sobre a real possibilidade de uma transição democrática na Líbia.

O questionamento, como sempre, se mostrou mais frutífero do que a certeza de que a ditadura tinha de cair, fosse como fosse. Cinco anos depois e cada vez mais afundado na guerra civil, o não-Estado líbio é porto de partida da mortal migração mediterrânea, além de terreno fértil para a Al-Qaeda do Magreb Islâmico e seu filhote fascista, o autoproclamado Estado Islâmico. A economia não existe, a política morreu.

Qualquer comparação da tragédia líbia com a situação do Brasil é absurda, certo? Menos para a revista Veja que, na capa de sua edição mais recente, acaba de relacionar Muammar Khadaffi e Luís Inácio Lula da Silva. O cientista político Reginaldo Nasser foi o primeiro a atentar para a gritante semelhança entre a imagem frontal de Veja, que mostra em preto e vermelho o derretimento da cabeça decapitada de Lula, à de uma edição de Outubro de 2011 do hebdomadário estadunidense Newsweek, dedicada à morte de Khadaffi.

Aos fatos: Khadaffi detinha um patrimônio de US$ 125 bilhões; Lula é acusado, sem provas, de ser o dono de um apartamento de R$ 3 milhões no Guarujá que, ironicamente, poderia ser pago com meia dúzia de suas palestras. Khadaffi chegou ao poder via golpe de Estado e manteve o governo a mão de ferro por mais de quatro décadas; Lula disputou cinco eleições presidenciais, foi eleito duas vezes e, quando tinha a maior popularidade da história do cargo, se recusou a mudar a Constituição para poder permanecer à frente do país. Khadaffi foi transformado em réu pelo Tribunal Penal Internacional, acusado de crimes contra a humanidade; Lula foi eleito pela revista Time dos líderes mais influentes do ano de 2010 e deixou a presidência sob especulações de que posto assumiria na ONU.

Dito isso, de onde a Veja tirou a ideia esdrúxula dessa comparação? Seria esquisito especular sobre o perfil psicológico de um panfleto fascistoide, mas eu arriscaria dizer que a capa desta semana, além de uma dose cavalar de irresponsabilidade, tem um componente narcísico. Talvez a Veja esteja tão autocentrada em sua cruzada paranoico-persecutória, que começou a acreditar em seu próprio discurso uníssono: que Lula é um monstro sanguinário passível de, à imagem de Muammar Khadaffi, ocupar o banco dos réus no Tribunal Penal Internacional. Ou pior (eis a razão deste texto dedicar-se a assunto tão abjeto quanto a capa da Veja): de ser linchado, estuprado e executado em praça pública.

Essa pior hipótese parece mais passível de cruzar o espírito do Civitismo do que a de enviar Lula para Haia. O TPI, com todos os seus defeitos e impotências - a começar pelo fato de que os países que mais geram criminosos de guerra não ratificaram o tratado de Roma - ainda é um espaço de soberania do direito. Por ali, não se chega ao banco dos réus sem provas contundentes. Pois não foi a toa que a Veja publicou sua capa mais abertamente fascista na semana em que o Estado democrático de Direito brasileiro deu seu segundo grande passo rumo ao abismo da arbitrariedade.

De maneira oportunista, a revista aproveitou que a força missionária da Lava-Jato decidiu se comportar como tribunal da Inquisição e substituir prova por convicção para defender linchamento no lugar de julgamento, vingança no lugar de justiça. Em outras palavras, Veja defende que o Brasil retroceda no processo civilizatório e se coloque, como sua musa inspiradora Líbia, na indigência da comunidade internacional. Se ainda houver no Judiciário brasileiro algum resquício de respeito pelo país e pela nossa posição aos olhos do mundo, esta apologia à tortura, ao estupro, ao linchamento e ao assassinato tem de ser sancionada com as mais altas penas previstas na lei. Impressa como está, a prova dispensa convicção.

Matéria publicada pelos Jornalistas Livres, a 20 de setembro de 2016
Compartilhar:

Publicidade não existe, isso é propaganda que botaram na sua cabeça

Foto: Propaganda de AK47 na Síria, trazida a você pela Wikipedia


Sabe por que temos medo de terrorismo? Pelo mesmo motivo que temos medo do diabo. Porque é uma entidade imaginária, manipulada pelos mais diversos poderes, da Igreja ao Ministério da Justiça, para instrumentalizar o mais desmobilizador de nossos sentimentos: o medo. Talvez, palavra melhor para "terrorismo" fosse propaganda. Em linhas gerais, a propaganda contemporânea busca forçar que façamos escolhas (não só de consumo, mas de vida) com base em nossas emoções e não na razão. Ela subverte o percurso intelectual de tomada de decisões e transforma em ímpeto consumista sentimentos como a esperança, a carência, o vazio existencial ou o próprio medo, entre vários outros. Ou seja, ela canaliza nossas emoções e determina o consumo como única via de satisfação pessoal.

Pra isso, o próprio consumo perde sua esfera objetiva - consumir é comprar coisas - e é convertido em um sentimento (subjetivo, claro) de plenitude: felicidade, realização, superação do próximo. A única esfera, aliás, em que o "próximo" ser humano existe dentro da lógica da propaganda é como parâmetro do nosso próprio sucesso. Se o sucesso é individualizado a partir da comparação com o próximo, o insucesso também é; ou seja, não existe esfera social para o fracasso ou o sucesso. Isso que é meritocracia: tudo que te acontece é culpa sua, ainda que você tenha nascido sem pai, sem mãe, sem casa nem educação enquanto o próximo veio com tudo isso mais uma viagem à Disneylândia por ano.

É simples introjetar essa lógica. Afinal, os sentimentos que foram canalizados pela máquina propagandística não são invenções, estavam dentro de nós o tempo todo. Com todos os maus sentimentos dentro de você e todos os bons, fora, problema seu se você é incapaz de se satisfazer. Como diz o Slavoj Zizek, vivemos em uma sociedade do pré-gozo, muito bem simbolizada pelas absurdamente contraditórias propagandas de bebidas e cigarros. A propaganda de cerveja te diz beba, com uma tarja preta embaixo dizendo: não beba. A de cigarro diz: fume. E a tarja preta: mas você vai morrer.

É um estado constante de tensão pré-orgasmo. Alguém te estimula até o limite e quando você está pra gozar, essa mesma pessoa para tudo e diz: "se você gozar, você vai morrer". E em seguida, conta que todo mundo está gozando, menos você. Aí, só te resta buscar a auto-ajuda pra que você possa continuar vivendo como o único que não goza. Estamos completamente formatados por essa lógica de substituição do racional pelo sensorial. Aguardamos que nos forneçam as emoções que vão ditar nossas próximas ações, em vez de decidir com nossa cabeça.

O Daesh, que se autoproclama Estado Islâmico e que, no Brasil, chamamos ridiculamente pela sigla em inglês ISIS, entende a lógica de nossos tempos. Ao menos a da propaganda. Quem já viu a revista ou os videoreleases deles sabe do que eu estou falando. Eles estão muito longe de projetar uma imagem de fanáticos religiosos - até porque, não são fanáticos religiosos, são um grupo ultraliberal de coloração política fascista.

Primeira edição da revista do Daesh

A Dabiq, publicada em inglês, parece a revista da Gol, com dicas de consumo e estética, belas paisagens ultraurbanizadas, coisas desse tipo. E os vídeos têm estética hollywoodiana: os combatentes aparecem em treinamentos à la Rambo, com trilha sonora à la Rambo, tem até aquela imagem clássica da câmera na ponta da arma, deliberadamente inspirada pelos jogos de videogame em primeira pessoa. No final - inexplicavelmente pra quem não é familiarizado com a lógica ultraliberal do Daesh -, surge uma paisagem urbana hi tech, tipo Dubai.

Os ataques terroristas, como os que vi no bairro em que vivia em 13 de novembro de 2015, em Paris, fazem obviamente parte dessa mesma lógica. Digamos que os vídeos e as revistas são a propaganda direta ao público consumidor; já os atentados têm uma dupla função: são a propaganda institucional - que tem o efeito de médio prazo de reforçar as filas de combate - e, paralelamente, o único instrumento diplomático que esse tipo de pseudo-Estado consegue utilizar à luz do dia. Quando uma grande derrota militar abala a credibilidade de seu projeto expansionista, o "califado" dispara esse tipo de ação portátil, que não depende de grande aparato militar, mas tem um impacto simbólico tão profundo que influencia a tomada de decisões diplomáticas.

Pouca gente lembra mas, naquele mesmo dia, o Daesh sofreu um enorme revés simbólico e estratégico, com a perda da cidade de Sinjar, no Iraque, para os peshmergas (forças ligadas ao partido democrático do Curdistão Iraquiano, apoiadas pelos Estados Unidos). Sinjar era duplamente importante: do ponto de vista estratégico, funcionava como rota de ligação entre as duas principais cidades sob controle total da organização - Mossul, no Iraque; e Raqqa, na Síria. Por ali, passavam combatentes, armamentos e muito petróleo. Do ponto de vista simbólico, foi em Sinjar que o Estado Islâmico exerceu toda sua crueldade. Durante a tomada da cidade, mais de cinco mil homens de minorias curda e yazidi foram assassinados. Mulheres e meninas de cinco, seis anos, foram reduzidas à escravidão sexual.

Diante de tamanha derrota, a sobrevivência do "califado" e de sua capacidade de recrutamento, exigia um choque propagandístico de diplomacia não-convencional. Naquela mesma noite, noticiários do mundo inteiro falariam dos atentados contra o Bataclan, o Petit Cambodge, dos bares nos arredores do Canal St. Martin, o coração boêmio da Cidade Luz. Mas claro que a diplomacia convencional é muito mais efetiva e cotidiana do que a dos atentados. Por baixo dos panos, o Daesh negocia com outros governos, obviamente. Afinal de contas, sempre se disse que ele se financia pelo tráfico de petróleo - eu, pelo menos, nunca conheci ninguém que comprou uma latinha de petróleo na padaria.

A Turquia, por exemplo, tem uma relação no mínimo dúbia com o grupo. A cerradíssima fronteira com a Síria, que sempre travou a circulação da população curda, virou uma peneira desde 2014, quando os islamitas começaram a colonizar a região. Armas, óleo e combatentes wahabistas circulam por ali à vontade. Wahabistas, aliás, é um termo importante. O Ocidente, de maneira deliberadamente preconceituosa, e a grande mídia brasileira, creio que por pura ignorância, se acostumaram a chamar os wahabistas de jihadistas. Mas jihadista quer dizer muito pouco. Se tomarmos a palavra jihad ao pé da letra, todo mundo que acorda de manhã e dorme de noite, todo mundo que enfrenta o dia a dia, é um jihadista. Jihad é a luta do quotidiano.

A particularidade de organizações sunitas violentas, como o Daesh e a Al-Qaeda (além, claro, de ter recebido muito apoio de Estados ocidentais interessados em uma mão forte no Oriente Médio pra garantir o fluxo petrolífero) é seguirem a doutrina wahabista. A criadora e grande promotora mundial desse ramo fundamentalista do islã é a petromonarquia saudita, principal compradora de armas e grande aliada do Ocidente na região. Absolutamente todos os combatentes europeus do Daesh se radicalizaram em mesquitas financiadas pelos sauditas. Ou seja, os grandes pontos de sustentação do grupo são os aliados do Ocidente: Arábia Saudita, pelo lado ideológico, e Turquia, pelo lado financeiro e logístico.

Mas a mais "surpreendente" das ligações externas do Daesh é o fato de que toda a comunicação do grupo passa pela Europa. Todos os vídeos, comunicações, tuítes, decapitações, tudo que o grupo publica passa pelos satélites de duas empresas, a francesa Eutelsat e a britânica Avanti. E a internet por satélite é muito facilmente rastreável, já que as antenas simplesmente não funcionam sem coordenadas precisas de GPS. Ou seja, duas empresas europeias podem causar um apagão em toda a comunicação do Daesh e, basicamente, anular o grupo, como denunciou a revista alemã Der Spiegel, no fim de 2015.

Por que não fazem? Porque isso seria anticapitalista: o lançamento de satélites é caro e a vida útil dos aparelhos não ultrapassa dez anos. Uma vez que eles estão em órbita, é preciso vender rapidamente os pacotes de dados para que eles se paguem. O problema é que a cobertura mundial de internet wireless é grande demais, falta mercado. O mercado de maior demanda hoje é justamente nos territórios ocupados pelo Daesh, em que a infra-estrutura de rede foi reduzida a zero. No fundo, o capitalismo financeiro global e o Daesh estão no mesmo jogo ultraliberal, cujas tintas políticas têm diferentes matizes de fascismo. Muda a peça, o produto anunciado e o grau de violência do anúncio, mas a lógica de substituição da razão pela emoção como maneira de vender um produto - seja o wahabismo, seja a cerveja - é a mesma desde Goebbels. 
Compartilhar:

Inscrição

Receba os posts por email:

Delivered by FeedBurner