23 novembro, 2016

Um negro chamado ninguém

Não deixo de ser negro ao falar de temas que não tocam diretamente o negro. Só deixo de ser ouvido.


Primeiramente, além do #ForaTemer, meu lugar de fala: sou negro, sou de esquerda, homem heterossexual (até onde eu sei), de classe média, trabalhador da notícia (para me diferenciar do que se convencionou chamar de jornalista), mestre em literatura, descendente de escravos e nordestinos, vítima de racismo direto e institucional, culturalmente brasileiro, politicamente apátrida e antinacionalista. E escrevo para exigir o direito de não-ser.

Não falo da obrigação de não-ser imposta verticalmente àqueles cuja voz a sociedade descarta, mas do direito de me manifestar fora de meu lugar de fala. O nome do meu site é a reivindicação populista de um lugar de fala, é uma leitura radical da formação afrodescendente de minhas influências. "Afroências" é um clamor por aceitação, é a contradição primordial, fundadora, deste espaço. É o fóssil de minha tentativa de pertencer a um lugar de fala, um lugar negro, que me colocasse ao lado daqueles que tenho como ídolos.

Ser negro é não ter lugar nem fala; não por opção, mas por imposição. Nos impuseram o não-lugar da cultura, arrancada pela escravidão; o não-lugar dos nomes vilipendiados; o não-lugar dos corpos dilacerados; o não-lugar do desemprego, da ausência de direitos. É apenas normal que reivindiquemos um "lugar". O problema é que reivindicamos um salvo-conduto para os espaços tradicionalmente ocupados pelo branco liberal. Eu quero implodir o próprio lugar e sobrar só com a fala - desta vez, por opção e não por imposição.

Isso significa destruir os espelhos, a representatividade, a própria individualidade e exigir o direito de ser ninguém, de ser um problema real para um sistema cuja torre de opressão é fundada na construção do indivíduo e de seu direito inalienável de propriedade. Não quero propriedade de nada, nem do meu próprio nome. Quero ser um pirata de mim mesmo, um ninguém que gera pensamentos. Se nosso sistema econômico foi fundado na escravidão, quero a abolição não só da escravidão, mas da própria lógica que a possibilita. Ou seja, quero revogar a ideia de propriedade, seja de uma pessoa, seja de um discurso. Exigir um "lugar de fala" significa exigir a propriedade sobre um discurso. Quero que o discurso não pertença a ninguém. Quero o direito de ser ninguém.
"Ponha-se no seu lugar" é "reivindico meu lugar de fala" conjugado no imperativo.

Essa posição é perigosa: é muito mais fácil se legitimar a partir de seu lugar de fala. Todo mundo conta com a propriedade de um lugar. Se o branco de direita quer nossa volta à senzala, o branco de esquerda espera que nosso lugar legitime a fala dele. Nos dois casos, "ponha-se no seu lugar" é "reivindico meu lugar de fala" conjugado no imperativo.

Quero falar sem lugar, quero falar sem gueto e quero cota não de 10%, mas de 100% no lugar de fala do branco. Quero que os homossexuais tenham cota de 100% no lugar de fala dos heterossexuais. Quero que as mulheres tenham cota de 100% no lugar de fala dos homens. Quero que o lugar de fala se exploda e ceda espaço ao direito verdadeiramente democrático de falarmos de qualquer lugar, de qualquer assunto - mesmo daquele que pertence à esfera de quem nos oprime.  Nós, oprimidos sob diversos prismas, só seremos verdadeiramente perigosos quando enxergarmos primeiro a opressão e depois o prisma. Do contrário, vamos virar a black face do white power, como foi Barack Obama. Porque, no fundo, quando se diz "lugar de fala", a palavra-chave é "lugar" e não "fala".

Por isso, nossa arma é falar de tudo, ocupar todos os lugares e não nos restringir ao que se espera de nós. Não quero denunciar só o racismo, muito menos numa perspectiva individual. Não quero falar que apanhei da polícia pela primeira vez aos dez anos nem dizer que, tantos idiomas e diplomas depois, ainda me mandam subir por elevador de serviço. Quero discutir política europeia, sim. Quero discutir filosofia clássica, sim. Quero discutir macroeconomia, sim. Sim, quero discutir tudo sem que o filtro seja esse nada que é tudo que cabe em "meu lugar de fala". Não deixo de ser negro ao falar de temas que não tocam diretamente o negro. Só deixo de ser ouvido. Mas prefiro a surdez dos opressores ao sectarismo dos oprimidos.

PS.: Esse texto é contraditório em si. Ele só possibilita criticar o lugar de fala porque reivindica o lugar de fala. E eu tenho certeza que ele vai funcionar não por causa da crítica radical, mas por causa da reivindicação do lugar de fala. Todo mundo vai ler o texto e entender o manifesto porque sou um negro negando meu lugar de fala.
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04 novembro, 2016

Túnel no fim da luz

Como se enfrenta a depressão intelectual que emana da fumaça narcótica da fogueira de livros? Como se descobre a beleza do pensamento em meio aos escombros do sonho democrático? Onde se busca o pedestal da Justiça, quando a liquidez da exceção se sobrepõe às fundações do direito? 



É impressionante o Museu Histórico da Alemanha, em Berlim. Ele retraça a vida cotidiana e política de uma cidade que viveu múltiplas fundações, uma cidade obrigada a se reconstruir de baixo a cima pelos canhões e canetas de autoritarismos diversos. Quando entramos na sala modernista que introduz o século XX, nos deparamos com a ebulição de uma sociedade que se acreditava, pela força da tecnologia e da explosão criativa, destinada a grandes feitos.

Um primeiro fio de gelo corre a espinha quando nos deparamos com o Manifesto Futurista de Filippo Marinetti, exposto em sua impressão original e na versão francesa, que se tornaria célebre na capa da edição de 20 de fevereiro de 1909 do diário conservador Le Figaro. Olhos treinados como os nossos, que as trincheiras, campos de morte e gulags do século XX se encarregaram de engolir, captam rapidamente as palavras-chave do texto, como se fossem hyperlinks para o holocausto: "guerra", "patriotismo", "higiene militar".

Conforme descemos a espiral do autoritarismo, multiplicam-se as legendas: "desaparecido", "exilado", "executado" Depois de glorificar o "escarnecer da mulher", Marinetti promete destruir "os museus, bibliotecas, academias de todo tipo". Poderia ter sido mais um entre os muitos manifestos artísticos daquela era profícua, se não caísse em triste circunstância histórica. Mal sabia ele o quão suja e rápida se faria a higiene militar. Primeiro, na mais mortal de todas as guerras, em que uma geração jovem (não só europeia, mas do planeta inteiro) foi literalmente afundada em lama tóxica.

Apesar da importância histórica da Primeira Guerra, a curadoria do Museu é sagaz ao atalhá-la em uma sala curta, encerrada pelo tratado de Versalhes, que colocou a Alemanha de joelhos. Apresenta-se então um soldado austríaco do fronte alemão, popular entre seus combalidos camaradas de trincheira. Seguro de seu dote para a retórica, ele estuda o texto da rendição e passa a pregar a reascensão mística de um espírito alemão original, purgado do que ele patologicamente acusa todos os males: o "lobby judeu".

Amplamente menosprezado pelas demais forças políticas, o ex-soldado Hitler chega ao posto de chanceler e seu partido Nacional Socialista vira força majoritária no Parlamento alemão. E aí, temos que mudar de andar no museu. Seguem-se quatro lances de escada descendente. A parede frontal do primeiro lance é decorada de artistas, filósofos, empresários, políticos, juristas, poetas e intelectuais da cena berlinense no início dos anos 30. Conforme descemos a espiral do autoritarismo, os retratos começam a escassear, substituídos por legendas: "desaparecido", "exilado", "executado".

Ao chegar no térreo, já não sobram mais do que meia dúzia de retratos. A sinfonia wagneriana que nos acompanhava desde a primeira guerra cede lugar a uma ambientação sonora de murmúrios, palavras de ordem militares e crepitações. Estamos num túnel escuro, cuja única luz, lá no fundo, repousa sobre o último retrato: Adolf Hitler nos encara de cima pra baixo, imponente. Conforme nos aproximamos do führer, percebemos que, debaixo das grades que cobrem o chão, há um interminável lençol de sapatos. Estamos em pleno Holocausto.

O pensamento morreu ou foi exilado. O Judiciário, missionário, serve à causa paranoica do expurgo nacional de judeus, comunistas, deficientes, homossexuais. A indústria produz para a guerra e desenvolve tecnologias de assassinato em massa. A ciência torna-se tóxica e misantrópica. A política padece sob a voz de um homem só. Estamos no porão da história alemã, estamos no porão da humanidade. Somos insensíveis, somos contra-humanos, somos coletivamente suicidas e distópicos.

Não estamos face a um novo Holocausto. Mas vivemos uma ruptura histórica impulsionada por uma Crise comparável a 29 Prever um genocídio em escala industrial no horizonte atual seria colocar o carro na frente dos bois. Por mais que a crise migratória tenha transformado o Mediterrâneo no tumbeiro do século XXI; por mais que o Oriente Médio tenha sucumbido às ruínas sob as ambições de seitas apocalípticas e neoliberais sedentos de petróleo; por mais que o assassinato de minorias seja o modus operandi das polícias americanas (do Brasil aos Estados Unidos, com uma longa escala mexicana); por mais que o Estado turco tenha se convertido na ferramenta genocidária de um financista fanático como Recep Erdogan; por mais que Israel faça da Faixa de Gaza um showroom de aparatos repressivos para exportação; por mais que fundamentalistas cristãos norte-americanos tenham se convertido em lobistas pelo assassinato de homossexuais em Uganda; por mais que uma grave distorção da luta anticolonial nigeriana tenha gerado o Boko Haram... Por mais que possamos, enfim, elencar incontáveis signos de misantropia mundo afora, não estamos face a uma máquina de morte das proporções e do rigor metodológico do Holocausto.

Mas não podemos ignorar que vivemos um momento de ruptura histórica impulsionado por uma crise econômica com C maiúsculo cujo único paralelo na história do capitalismo foi o crash de 1929 - justamente aquele que reuniu as condições para a ascensão democrática do fascismo. E, como naquela época, é inegável que a paixão política está nas mãos da direita mais raivosa. Quem, em sã consciência, pode esperar que, hoje, o tão sonhado colapso do capitalismo abra espaço para um mundo mais justo, solidário e igualitário? Como diz o sempre preciso Yanis Varoufakis, o que se vislumbra hoje pela janela do futuro "faz o filme Matrix parecer um documentário".

No Brasil pós-golpe, sintomas de uma infecção fascista, que se alastra dos três poderes à população em geral (e vice-versa), são claros e evidentes. Das prisões arbitrárias à normalização do assassinato de negros, jovens pobres e mulheres sob a narrativa fluida do inimigo interno, é evidente que nossa insensibilidade atinge níveis perigosos. Some-se a isso a descrença na representação política, simbolizada pela abstenção calamitosa às eleições municipais de outubro de 2016. Descrença que é retroalimentada por um governo que, não-eleito, sequer se preocupa em fingir alguma representatividade: enterra goela abaixo da população as mais impopulares de todas as pautas da Nova República.
Temos coragem de exigir, para além do fim da PM, o fim do sistema prisional? Temos coragem de pedir mais impunidade?
Se não bastasse, a representatividade política não foi a única - e talvez nem a maior - vítima do golpe parlamentar. As próprias instituições da República parecem se desmilinguir. No domingo que antecedeu as eleições municipais, um homem que se apresenta como ministro da burocracia parasitária que se autodenomina governo subverteu princípios básicos da Justiça para anunciar a perseguição de seus adversários políticos pela Polícia Federal. A prisão de Antonio Palocci, na mesma cidade e apenas um dia depois do pronunciamento do pseudoministro, deixou evidente que a Justiça e o aparato repressivo se fundiram numa coisa só. Se não dá mais para falar em independência do Judiciário, não dá mais para falar em independência entre os poderes. Logo, não dá mais para falar em Estado democrático de direito no Brasil. O que vivemos é uma psicopatologia coletiva auto-imune, que cria um ciclo em torno de si mesma ao transformar o próprio tecido social em seu principal inimigo, assim como fez a Alemanha nos anos 30. E a população reage entre punitivismo e apatia.

Precisamos tirar o Brasil da letargia da insensibilidade, um desafio hercúleo se considerarmos que este povo foi obrigado à insensibilidade por 500 anos da mais cruel opressão. Depois de tanta brutalidade, é natural a população ser mais seduzida pela promessa de vingança que pela promessa de Justiça. É missão nossa tirar lenha dessa fogueira. Precisamos nos indignar juntos por todos os injustiçados, por todos os oprimidos, por todos os presos. Não podemos pedir mais punição para nossos inimigos e menos para os nossos amigos; precisamos pensar uma sociedade capaz de se reeducar eticamente, alforriada da catarse moralista da punição. Temos coragem de exigir, para além do fim da PM, o fim do sistema prisional, como defende a neo-abolicionista Angela Davis? Temos coragem de pedir mais impunidade?

Precisamos repensar nossos conceitos mais elementares: o que é riqueza? Por que medimos nossa produção a partir do PIB, um índice que despreza a contrapartida social dos investimentos? Temos muito estudo pela frente. Não podemos nos contentar com a comunicação por memes e textos de 140 caracteres. Para que(m) serve o crescimento econômico, num momento em que nossa atividade ameaça a própria sobrevivência da Terra? Por que não distribuímos riqueza, já que produzimos mais excedentes que todas as gerações anteriores? Por que todas as pessoas não têm uma renda mínima? Por que se explora petróleo? Existe ecologia, feminismo, movimento negro e LGBT dentro do capitalismo? O que é liberdade econômica? Qual o fundo ideológico e geopolítico da nossa posição atual? Por que existem paraísos fiscais? Por que existem bancos? Por que nunca abolimos a escravidão?

Temos muito estudo, muita troca de ideias pela frente. Não podemos nos contentar com a comunicação por memes e textos de 140 caracteres. Esses veículos funcionam tão bem para a publicidade porque são intrinsecamente capitalistas. Faz parte da nossa missão civilizatória desconstruir a absorção publicitária da realidade porque ela é acrítica em si. Mais do que isso, ela é anti-crítica, já que faz suas acepções com base em estudos que determinam com muita precisão os preconceitos médios da sociedade. Não me impressiona nada o fato de que um terço dos nossos homens acha que a vestimenta de uma mulher pode justificar um estupro; como mostram as propagandas de cerveja, feitas sob rigoroso targeting, a maioria dos homens vê as mulheres como objetos descartáveis.

Esse processo se retroalimenta: a propaganda publiciza a mediocridade, que retorna à sociedade como um valor. Quando um conceito crítico é incorporado à sociedade ao ponto de ganhar viabilidade mercadológica, a publicidade trata de subtraí-lo de seu componente crítico e explorar seu potencial comercial. É o que acontece com a representação do negro ou do homossexual, por exemplo. Como hoje eles têm valor mercadológico, eles são engolidos, despidos de suas contradições (as contradições são essencialmente críticas) e atirados de volta ao público no formato de commodities sem alma.

Precisamos ter alma. Precisamos gerar dúvidas e não certezas. É hora de estudar e gerar contradições. Afetos e contradições são o antifascismo em si. Um fascista é aquele cuja certeza paranoica bloqueia a empatia. Só se chega a esse grau de certeza, a esse nível de desconstrução de contradições, por meio do pensamento dogmático. É por isso que, para se instaurar, o fascismo exige um alto grau de transcendência. O pensamento fascista tem de ter estrutura religiosa. Adolf Hitler sabia disso tão bem, que construiu uma poderosa mística em torno de objetos e rituais sagrados.

Tinha, por exemplo, o ritual da Fahnenweihe (algo como "consagração da bandeira"), quando o führer pessoalmente benzia todas as novas insígnias nazistas com uma bandeira ensanguentada. Em tese, o sangue pertencia a um dos homens da SA mortos durante a tentativa fracassada de golpe de estado comandada por Hitler em novembro de 1923. Nunca se soube se a bandeira era mesmo original, mas isso tanto fazia: o importante era a sacralização e ritualização do objeto.

O Brasil de hoje, que é descrente na política e tem no discurso publicitário um filtro preferencial de leitura do mundo, oferece o repertório cultural e a configuração mental acrítica perfeitos para a instalação de uma teologia política fascistoideSe alguém teve a ilusão de que o golpe reforçaria a coesão das esquerdas, pode esquecer. Retrocesso gera retrocesso. - complementada pelo discurso maniqueísta de uma influente franja das igrejas neopentescostais de matriz estadunidense. Memes que representam a direita como Jesus e a esquerda como o demônio exemplificam um processo de re-significação teológica dos antagonismos políticos. Certas igrejas evangélicas transmutam analogicamente ideologia neoliberal - empreendedorismo, desconstrução do Estado, individualismo - em discurso religioso. Elas leram Eduardo Galeano melhor do que nós e teorizaram o Deus-mercado. Dentro da lógica dogmática, isso significa que a justiça social, a diversidade, o igualitarismo etc. foram literalmente para a casa do diabo. Como vamos lutar contra Deus?

Essa representação binária do mundo funciona justamente porque a vida não é binária, mas contraditória o tempo todo. Você é morto pelo Estado sem ter cometido crime; você ganha um salário mínimo e paga mais imposto que um bilionário; a parte que você paga não se reverte em nada e você ainda tem que pagar uma segunda taxação pra milícia ou crime organizado; você terceiriza sua saúde para um médico que não te atende; seu filho rouba uma bolacha e é linchado; o filho do Eike Batista explode um trabalhador e sai de boa.

Sem a possibilidade de um desenvolvimento teórico e intelectual profundo, é apenas natural que surja na sociedade a necessidade de uma explicação atenuante de contradições tão radicais. É necessária uma estrutura transcendente que ordene esse repertório tão vasto de paradoxos. Contradições são terreno fértil para utopias. O problema é que esse espaço é atualmente cooptado pela extrema-direita. É preciso entender como o niilismo pós-morte da representatividade se converte nessa psicopatologia fascista e administrar à sociedade uma bela dose de utopia.

Novos horizontes de sonho são nosso antídoto, já que só a flor do fascismo brota da distopia. Se alguém teve a ilusão de que o golpe no Brasil reforçaria a coesão das esquerdas, pode esquecer. Retrocesso leva a mais retrocesso. E temos uma burguesia, armada de meios de comunicação de massa num país semi-alfabetizado, que promete eleger presidente um homofóbico misógino orgulhosamente favorável à implosão do Ministério da Cultura. Ou seja, precisamos nos levantar antes que o autoritarismo arranque nosso direito à imaginação.

No imaginário social, há campo para o resgate da utopia. Afinal, as únicas duas forças ideológicas que crescem entre os brasileiros hoje são absolutamente utópicas (ou distópicas, já que são o anverso reacionário da utopia): o discurso anticorrupção, envenenado por ideologia neoliberal; e o religioso, que prega vida depois da morte, a maior de todas as utopias.
Google, Twitter, Facebook - Quem produz o conteúdo deles? Por que não temos todos uma gorda parcela de suas ações?
Esse avanço distópico tem boa dose de culpa nossa. Não só no Brasil, mas no mundo, a esquerda majoritária abandonou a ideia de transformação radical da sociedade. Aceitamos o consenso de Washington e a teoria do fim da história e passamos a nos ver como gerentes privilegiados de um futuro inexoravelmente capitalista. Acreditamos que a social-democracia era o sinal de que o capitalismo poderia ser mais ou menos humano, se reduzíssemos gradualmente as contradições, se varrêssemos a luta de classes pra baixo do tapete. Faltou dialética no nosso olhar. Faltou encarar a social-democracia como uma ferramenta econômica, política e ideológica do capitalismo para disputar corações e mentes com o bloco comunista.

Com a queda do muro de Berlim, o capitalismo se desonerou de seu compromisso com o ser humano. Aceitou que tudo funcionaria melhor se dois terços da população simplesmente desaparecessem. Sem o contraponto ideológico comunista, o "lado humano" do capitalismo ficou obsoleto; virou propaganda sem público alvo. Começou um processo enlouquecido de concentração de renda, a financeirização criou mecanismos virtuais de geração de lucro sem valor, surgiram formas sofisticadas de escravidão, como a praticada por empresas como Google e Facebook - afinal, quem produz o conteúdo deles? Por que nós não levamos todos uma gorda parcela de suas ações?

Mesmo diante de tudo isso, achamos que conseguiríamos domar a besta por meio de um precário equilíbrio entre interesses classistas. Bastou uma crise econômica para que o equilíbrio implodisse e os ricos colocassem de volta na mesa a nossa principal carta: a luta de classes. Se a gente esqueceu desse conceito marxista básico, eles não. E querem aproveitar esse momento para ganhar de vez.

Como se enfrenta esse tipo de depressão intelectual, que emana da fumaça narcótica da fogueira de livros? Como se descobre a beleza do pensamento em meio aos escombros do sonho democrático? Onde se busca o pedestal da Justiça, quando a liquidez da exceção se sobrepõe às fundações do direito? Vamos ter que encontrar essas respostas. Ou seremos tragados pelo ralo do fascismo.
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Temer na ONU: até que nem tanto esotérico assim

Temer fingiu que somos o país do futuro. Só quem vê futuro no Brasil pós-golpe é o capital improdutivo. Mas talvez esse seja o público alvo de Temer. Fingir que está tudo bem, quando todo mundo vê que não está, significa relegar a democracia ao papel secundário de administradora de aparências. 


Foto-ilustração de Joana Brasileiro sobre imagens de Ricardo Stuckert/ Instituto Lula; Beto Barata/PR/fotospublicas


O discurso de Michel Temer na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas na terça-feira (20) mereceria um estudo profundo. Não vale a pena discorrer longamente sobre a incoerência estrutural do conteúdo, porque isso já foi muito bem feito pela Helena Borges no Intercept. Basta dizer que ele tenta vender a ideia de que tudo está normal e o Brasil cumpre, internacionalmente, o mesmo programa que nos colocou no mapa da diplomacia durante os governos petistas.

Michel Temer parece querer recuperar a credibilidade política na esfera internacional à la Pollyana, fingindo que tudo vai bem. Suponhamos (apenas suponhamos) que o autor deste texto refutasse a tese do golpe, pensasse que o Judiciário brasileiro faz um trabalho isento de combate à corrupção, que a imprensa é livre e comprometida com a imparcialidade. Ainda assim, se o mundo suspeita que há algo de podre no reino da Dinamarca, cabe aos dinamarqueses se explicar. E pesam muito mais suspeitas sobre o Brasil do pós-golpe que sobre a Dinamarca shakesperiana.

Quem falou? Pra ficar na França, Le Monde, Le Figaro (diários conservadores franceses viraram leitura trotskista perto da grande mídia brasileira), Libération, membros diversos do Legislativo francês e daí por diante. Até o New York TimesTemer trata a ONU como extensão do quintal midiático onde os golpistas amarraram seu cavalinho de Troia. olha de rabo de olho para esse "impeachment". Na China, ele fingiu que tudo andava normal no G20, fez cara de paisagem para a foto oficial, como se não tivesse sido colocado de canto, como mau aluno de escola sem partido.

Diante de delegações que deixavam a sala em denúncia a sua ilegitimidade, Michel Temer subiu à Tribuna da ONU para falar do Brasil atual como se estivéssemos na era Lula, quando os problemas mais graves se passavam porta afora e o mundo via nossa jovem democracia com esperança. Dizer hoje que, "aí na terra de vocês, tem guerra, xenofobia, nacionalismo 'exacerbado' (como se nacionalismo "contido" não fosse uma dinamite com o pavio apagado)" e posar como um farol de distribuição de renda, acesso à habitação, educação inclusiva e relações externas altivas é tratar a classe política internacional como uma extensão do quintal midiático onde os golpistas amarraram seu cavalinho de Troia. Em casa, ele pode falar o que quiser, que "umas 40 pessoas" querem vê-lo pelas costas.

Lá fora, a coisa muda. O mundo político não vê o Brasil com os olhos esperançosos da década passada. Basta reparar no grau de hesitação de chefes de Estado de todo o planeta em reconhecer isso que a gente está obrigado a chamar de "governo". Só quem vê futuro no Brasil pós-golpe é o mais distópico dos setores econômicos: o capital improdutivo. Mas talvez esse seja o público alvo de Temer quando trata a mais alta esfera da política mundial como um palco em que se encena a normalidade. Fingir que está tudo bem, quando todo mundo vê que não está, significa relegar a democracia ao papel secundário de administradora de aparências. E assim, sinalizar ao "mercado" (que opera por meio de aparências esotéricas de normalidade) que não há razão para se preocupar com a instabilidade gerada pela pluralidade de opiniões.

Não é novidade. Essa hipocrisia se aproxima do modus operandi dos gerentes Rigor fiscal é impopular? Para um corpo político que só se vê como gerente de interesses privados, o povo tanto faz. (chamar de chefes de Estado é exagero) da União Europeia que, contra toda e qualquer lucidez, seguem impondo cinicamente, por meio de medidas de austeridade, o ônus da crise financeira aos mais pobres. Só os bancos, responsáveis pela quebra da economia global, se beneficiam dessa política. E a população em geral é abertamente contrária. Mas para um corpo político que não se vê como mais do que administrador eleito de interesses privados, tanto faz o que pensa a população em geral. Bom exemplo disso é a maneira como a Comissão Europeia esmagou a tentativa da Grécia sob o Syriza de adotar medidas anticíclicas como forma de assegurar, no médio prazo, a renegociação e eventual pagamento de sua dívida astronômica. Nas excelentes palestras que faz pelo Velho Continente para promover seu Movimento pela Democracia na Europa (DiEM25), o ex-ministro grego das Finanças Yanis Varoufakis conta algumas anedotas elucidativas.

Em sua primeira reunião com a Troika de credores da Grécia (FMI, Banco Mundial e Comissão Europeia), Varoufakis fez uma proposta moderada que, como ele mesmo diz, "qualquer advogado de falências de Wall Street faria". Ele sugeriu duas medidas para evitar um novo empréstimo, cujas contrapartidas draconianas reduziriam o PIB do país em 28% e obviamente impediriam que a dívida fosse quitada: a reestruturação das formas e prazos de pagamento e a retomada do investimento produtivo, de onde viria a renda para reembolsar os credores.

Varoufakis construiu a argumentação de forma igualmente moderada: "Existe um programa que foi assinado pelo governo anterior e sei que um Estado exige continuidade. Um novo governo não pode simplesmente chegar e começar do zero [viu, seu Michel Temer?]. Mas o povo grego nos deu o mandato justamente para contestar este programa. Então, temos dois conceitos que se chocam de frente aqui: continuidade e democracia. Nessas circunstâncias, o que podemos fazer? Encontrar um campo comum para as negociações. Em outras palavras, fazer concessões". Antes de terminar a frase, o chefe das Finanças gregas foi interrompido pelo seu colega alemão, Wolfgang Schauble, que soltou a seguinte pérola: "Não podemos permitir que votos mudem um programa econômico".
O golpista busca lugar à mesa global. Não pela porta da frente, mas pelos fundos - o que não é novidade para Temer.
Quer dizer, não podemos permitir que algo tão insignificante quanto a democracia contrarie interesses do capital financeiro. Como diz o próprio Varoufakis, eles querem tirar o "demos" (povo) da democracia. Em outra ocasião, tomando café depois de longas horas de reunião, o ministro grego ouviu da chefona do FMI, Christine Lagarde: "Você tem razão, nosso programa vai agravar a crise grega e não vai recuperar a capacidade de investimento do país. Mas você tem que levar em conta que investimos muito capital político para convencer todo mundo a aceitar a austeridade fiscal".

Talvez, com seu discurso de normalidade, o eterno interino tente se aproximar deste grau de hipocrisia para encontrar seu lugar à mesa dos players globais. Não pela porta da frente, como fizemos nos bons tempos de Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia, mas pelos fundos - o que, cá entre nós, não é novidade para Michel Temer. Ele se ausenta de oferecer a resposta política que a desconfiança internacional exige porque sabe que seu único lastro com o poder - e quiçá com a própria política - é o capital. Assim, Temer faz uma mímese esvaziada do Brasil que encantou o planeta nos últimos anos. Por trás, oferece ao capital improdutivo exatamente o que ele quer: a política como farsa necessária à primazia de interesses privados.

Esse tipo de esquizofrenia é muito comum a quem chega ao poder pela via golpista. O problema é que a doença virou epidemia em 2008, quando o capital improdutivo iniciou sua ofensiva para sequestrar as esferas executivas da política. E, como se vê pela triste deriva europeia, não são só governos ilegítimos que sofrem dela.

A nossa única arma contra essa ofensiva da distopia, da ideia de que apenas uma parte privilegiada da sociedade tem direito a ter direitos, é a utopia da distribuição, tanto de poder quanto de renda. Como bem percebeu Varoufakis, é reinserir o demos na democracia, em todos os lugares, em todas as esferas. Entramos em uma luta pelo direito à participação. O discurso de Temer, por mais absurdo que pareça, mostra que este governo está consciente de que a guerra pelo controle da política está em curso. Eles escolheram um lado e estão tentando divorciar poder e povo. E nós? Estamos dispostos a radicalizar a democracia?

Matéria publicada pelos Jornalistas Livres, a 22 de setembro de 2016
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Porque a comparação que Veja faz de Lula e Khadaffi não tem sentido



Vinte de outubro de 2011. As forças da Otan, lideradas por uma esquadra de Rafales franceses, atacam a cidade líbia de Sirte, onde se esconde Muammar Khadaffi, panafricanista convertido em ditador sanguinário. Khadaffi tenta fugir em um comboio de carros mas, mal cruza a fronteira da cidade, é interceptado por rebeldes que, auxiliados pela Otan, formariam a base de um tal de governo de transição que hoje continua lá, mas não é transição nem governo.

Durante os próximos quatro dias, o corpo destroçado de Khadaffi apodreceria em praça pública. Autoridades internacionais, do então presidenciável francês François Hollande à então secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, festejariam o fim do "reinado de terror". A notícia parecia boa para a comunidade internacional: Khadaffi havia sido morto em fogo cruzado. Não soava estranho que seu corpo fosse vilipendiado, considerado o sofrimento que o autocrata de 125 bilhões de dólares (era essa sua fortuna estimada) causara a sua própria população.

Se três anos antes, Nicolas Sarkozy fechava as margens do Sena pra que Khadaffi pudesse passear tranquilo pelas águas de Paris, desde que ficou decidida a desastrada intervenção internacional na Líbia, a grande mídia se empenhou na construção de um monstro. Surgiram relatos de câmaras de tortura para opositores políticos em porões de Benghazi; todo mundo tinha a certeza de que o ditador havia estabelecido o estupro de crianças como arma política.

Matérias de outrora, como as que discorriam longamente sobre a habilidade de Khadaffi em usar programas sociais para converter o lucro de suas enormes reservas petrolíferas no maior Índice de Desenvolvimento Humano do continente africano, simplesmente desapareceram. Sumiram também os elogios ao fato raro de que, sob a ditadura, negros migrantes da África subsaariana encontravam vida digna em solo líbio. As contradições, que são o tecido de qualquer relação social humana, deixaram de interessar ao consórcio político-corporativo-midiático internacional. Emergiu uma narrativa uníssona, cujo objetivo - também uníssono - era destronar o caudilho, custasse o que custasse.

E uma guerra civil de poucos meses, agora concluída com o cadáver de Khadaffi, parecia um baixo preço a se pagar. O problema é que, na era digital, as narrativas simplistas têm cada vez menos fôlego. Celulares do que a imprensa já chamava de "freedom fighters" - o conglomerado de jihadistas que paradoxalmente instauraria a democracia na Líbia - gravaram os últimos momentos do ex-líder "populista".  Primeiro, morreu a história do fogo cruzado. Khadaffi foi retirado de seu comboio com vida e executado com uma bala na cabeça.

Detalhes de novos vídeos deixavam a história mais macabra. Antes de morrer, ele foi linchado. Coberto de sangue, arrastado pela paisagem desértica da periferia de Sirte, ele recebe uma chuva de socos, pontapés e empurrões. E o mais perturbador ainda estava por vir: Khadaffi foi estuprado seguidas vezes com uma faca de combate BKT, de fabricação americana. Tudo filmado por regozijantes "defensores da democracia". A ONU pediu uma investigação sobre as circunstâncias da morte de Khadaffi, conforme a comunidade internacional começava a se questionar sobre a real possibilidade de uma transição democrática na Líbia.

O questionamento, como sempre, se mostrou mais frutífero do que a certeza de que a ditadura tinha de cair, fosse como fosse. Cinco anos depois e cada vez mais afundado na guerra civil, o não-Estado líbio é porto de partida da mortal migração mediterrânea, além de terreno fértil para a Al-Qaeda do Magreb Islâmico e seu filhote fascista, o autoproclamado Estado Islâmico. A economia não existe, a política morreu.

Qualquer comparação da tragédia líbia com a situação do Brasil é absurda, certo? Menos para a revista Veja que, na capa de sua edição mais recente, acaba de relacionar Muammar Khadaffi e Luís Inácio Lula da Silva. O cientista político Reginaldo Nasser foi o primeiro a atentar para a gritante semelhança entre a imagem frontal de Veja, que mostra em preto e vermelho o derretimento da cabeça decapitada de Lula, à de uma edição de Outubro de 2011 do hebdomadário estadunidense Newsweek, dedicada à morte de Khadaffi.

Aos fatos: Khadaffi detinha um patrimônio de US$ 125 bilhões; Lula é acusado, sem provas, de ser o dono de um apartamento de R$ 3 milhões no Guarujá que, ironicamente, poderia ser pago com meia dúzia de suas palestras. Khadaffi chegou ao poder via golpe de Estado e manteve o governo a mão de ferro por mais de quatro décadas; Lula disputou cinco eleições presidenciais, foi eleito duas vezes e, quando tinha a maior popularidade da história do cargo, se recusou a mudar a Constituição para poder permanecer à frente do país. Khadaffi foi transformado em réu pelo Tribunal Penal Internacional, acusado de crimes contra a humanidade; Lula foi eleito pela revista Time dos líderes mais influentes do ano de 2010 e deixou a presidência sob especulações de que posto assumiria na ONU.

Dito isso, de onde a Veja tirou a ideia esdrúxula dessa comparação? Seria esquisito especular sobre o perfil psicológico de um panfleto fascistoide, mas eu arriscaria dizer que a capa desta semana, além de uma dose cavalar de irresponsabilidade, tem um componente narcísico. Talvez a Veja esteja tão autocentrada em sua cruzada paranoico-persecutória, que começou a acreditar em seu próprio discurso uníssono: que Lula é um monstro sanguinário passível de, à imagem de Muammar Khadaffi, ocupar o banco dos réus no Tribunal Penal Internacional. Ou pior (eis a razão deste texto dedicar-se a assunto tão abjeto quanto a capa da Veja): de ser linchado, estuprado e executado em praça pública.

Essa pior hipótese parece mais passível de cruzar o espírito do Civitismo do que a de enviar Lula para Haia. O TPI, com todos os seus defeitos e impotências - a começar pelo fato de que os países que mais geram criminosos de guerra não ratificaram o tratado de Roma - ainda é um espaço de soberania do direito. Por ali, não se chega ao banco dos réus sem provas contundentes. Pois não foi a toa que a Veja publicou sua capa mais abertamente fascista na semana em que o Estado democrático de Direito brasileiro deu seu segundo grande passo rumo ao abismo da arbitrariedade.

De maneira oportunista, a revista aproveitou que a força missionária da Lava-Jato decidiu se comportar como tribunal da Inquisição e substituir prova por convicção para defender linchamento no lugar de julgamento, vingança no lugar de justiça. Em outras palavras, Veja defende que o Brasil retroceda no processo civilizatório e se coloque, como sua musa inspiradora Líbia, na indigência da comunidade internacional. Se ainda houver no Judiciário brasileiro algum resquício de respeito pelo país e pela nossa posição aos olhos do mundo, esta apologia à tortura, ao estupro, ao linchamento e ao assassinato tem de ser sancionada com as mais altas penas previstas na lei. Impressa como está, a prova dispensa convicção.

Matéria publicada pelos Jornalistas Livres, a 20 de setembro de 2016
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Publicidade não existe, isso é propaganda que botaram na sua cabeça

Foto: Propaganda de AK47 na Síria, trazida a você pela Wikipedia


Sabe por que temos medo de terrorismo? Pelo mesmo motivo que temos medo do diabo. Porque é uma entidade imaginária, manipulada pelos mais diversos poderes, da Igreja ao Ministério da Justiça, para instrumentalizar o mais desmobilizador de nossos sentimentos: o medo. Talvez, palavra melhor para "terrorismo" fosse propaganda. Em linhas gerais, a propaganda contemporânea busca forçar que façamos escolhas (não só de consumo, mas de vida) com base em nossas emoções e não na razão. Ela subverte o percurso intelectual de tomada de decisões e transforma em ímpeto consumista sentimentos como a esperança, a carência, o vazio existencial ou o próprio medo, entre vários outros. Ou seja, ela canaliza nossas emoções e determina o consumo como única via de satisfação pessoal.

Pra isso, o próprio consumo perde sua esfera objetiva - consumir é comprar coisas - e é convertido em um sentimento (subjetivo, claro) de plenitude: felicidade, realização, superação do próximo. A única esfera, aliás, em que o "próximo" ser humano existe dentro da lógica da propaganda é como parâmetro do nosso próprio sucesso. Se o sucesso é individualizado a partir da comparação com o próximo, o insucesso também é; ou seja, não existe esfera social para o fracasso ou o sucesso. Isso que é meritocracia: tudo que te acontece é culpa sua, ainda que você tenha nascido sem pai, sem mãe, sem casa nem educação enquanto o próximo veio com tudo isso mais uma viagem à Disneylândia por ano.

É simples introjetar essa lógica. Afinal, os sentimentos que foram canalizados pela máquina propagandística não são invenções, estavam dentro de nós o tempo todo. Com todos os maus sentimentos dentro de você e todos os bons, fora, problema seu se você é incapaz de se satisfazer. Como diz o Slavoj Zizek, vivemos em uma sociedade do pré-gozo, muito bem simbolizada pelas absurdamente contraditórias propagandas de bebidas e cigarros. A propaganda de cerveja te diz beba, com uma tarja preta embaixo dizendo: não beba. A de cigarro diz: fume. E a tarja preta: mas você vai morrer.

É um estado constante de tensão pré-orgasmo. Alguém te estimula até o limite e quando você está pra gozar, essa mesma pessoa para tudo e diz: "se você gozar, você vai morrer". E em seguida, conta que todo mundo está gozando, menos você. Aí, só te resta buscar a auto-ajuda pra que você possa continuar vivendo como o único que não goza. Estamos completamente formatados por essa lógica de substituição do racional pelo sensorial. Aguardamos que nos forneçam as emoções que vão ditar nossas próximas ações, em vez de decidir com nossa cabeça.

O Daesh, que se autoproclama Estado Islâmico e que, no Brasil, chamamos ridiculamente pela sigla em inglês ISIS, entende a lógica de nossos tempos. Ao menos a da propaganda. Quem já viu a revista ou os videoreleases deles sabe do que eu estou falando. Eles estão muito longe de projetar uma imagem de fanáticos religiosos - até porque, não são fanáticos religiosos, são um grupo ultraliberal de coloração política fascista.

Primeira edição da revista do Daesh

A Dabiq, publicada em inglês, parece a revista da Gol, com dicas de consumo e estética, belas paisagens ultraurbanizadas, coisas desse tipo. E os vídeos têm estética hollywoodiana: os combatentes aparecem em treinamentos à la Rambo, com trilha sonora à la Rambo, tem até aquela imagem clássica da câmera na ponta da arma, deliberadamente inspirada pelos jogos de videogame em primeira pessoa. No final - inexplicavelmente pra quem não é familiarizado com a lógica ultraliberal do Daesh -, surge uma paisagem urbana hi tech, tipo Dubai.

Os ataques terroristas, como os que vi no bairro em que vivia em 13 de novembro de 2015, em Paris, fazem obviamente parte dessa mesma lógica. Digamos que os vídeos e as revistas são a propaganda direta ao público consumidor; já os atentados têm uma dupla função: são a propaganda institucional - que tem o efeito de médio prazo de reforçar as filas de combate - e, paralelamente, o único instrumento diplomático que esse tipo de pseudo-Estado consegue utilizar à luz do dia. Quando uma grande derrota militar abala a credibilidade de seu projeto expansionista, o "califado" dispara esse tipo de ação portátil, que não depende de grande aparato militar, mas tem um impacto simbólico tão profundo que influencia a tomada de decisões diplomáticas.

Pouca gente lembra mas, naquele mesmo dia, o Daesh sofreu um enorme revés simbólico e estratégico, com a perda da cidade de Sinjar, no Iraque, para os peshmergas (forças ligadas ao partido democrático do Curdistão Iraquiano, apoiadas pelos Estados Unidos). Sinjar era duplamente importante: do ponto de vista estratégico, funcionava como rota de ligação entre as duas principais cidades sob controle total da organização - Mossul, no Iraque; e Raqqa, na Síria. Por ali, passavam combatentes, armamentos e muito petróleo. Do ponto de vista simbólico, foi em Sinjar que o Estado Islâmico exerceu toda sua crueldade. Durante a tomada da cidade, mais de cinco mil homens de minorias curda e yazidi foram assassinados. Mulheres e meninas de cinco, seis anos, foram reduzidas à escravidão sexual.

Diante de tamanha derrota, a sobrevivência do "califado" e de sua capacidade de recrutamento, exigia um choque propagandístico de diplomacia não-convencional. Naquela mesma noite, noticiários do mundo inteiro falariam dos atentados contra o Bataclan, o Petit Cambodge, dos bares nos arredores do Canal St. Martin, o coração boêmio da Cidade Luz. Mas claro que a diplomacia convencional é muito mais efetiva e cotidiana do que a dos atentados. Por baixo dos panos, o Daesh negocia com outros governos, obviamente. Afinal de contas, sempre se disse que ele se financia pelo tráfico de petróleo - eu, pelo menos, nunca conheci ninguém que comprou uma latinha de petróleo na padaria.

A Turquia, por exemplo, tem uma relação no mínimo dúbia com o grupo. A cerradíssima fronteira com a Síria, que sempre travou a circulação da população curda, virou uma peneira desde 2014, quando os islamitas começaram a colonizar a região. Armas, óleo e combatentes wahabistas circulam por ali à vontade. Wahabistas, aliás, é um termo importante. O Ocidente, de maneira deliberadamente preconceituosa, e a grande mídia brasileira, creio que por pura ignorância, se acostumaram a chamar os wahabistas de jihadistas. Mas jihadista quer dizer muito pouco. Se tomarmos a palavra jihad ao pé da letra, todo mundo que acorda de manhã e dorme de noite, todo mundo que enfrenta o dia a dia, é um jihadista. Jihad é a luta do quotidiano.

A particularidade de organizações sunitas violentas, como o Daesh e a Al-Qaeda (além, claro, de ter recebido muito apoio de Estados ocidentais interessados em uma mão forte no Oriente Médio pra garantir o fluxo petrolífero) é seguirem a doutrina wahabista. A criadora e grande promotora mundial desse ramo fundamentalista do islã é a petromonarquia saudita, principal compradora de armas e grande aliada do Ocidente na região. Absolutamente todos os combatentes europeus do Daesh se radicalizaram em mesquitas financiadas pelos sauditas. Ou seja, os grandes pontos de sustentação do grupo são os aliados do Ocidente: Arábia Saudita, pelo lado ideológico, e Turquia, pelo lado financeiro e logístico.

Mas a mais "surpreendente" das ligações externas do Daesh é o fato de que toda a comunicação do grupo passa pela Europa. Todos os vídeos, comunicações, tuítes, decapitações, tudo que o grupo publica passa pelos satélites de duas empresas, a francesa Eutelsat e a britânica Avanti. E a internet por satélite é muito facilmente rastreável, já que as antenas simplesmente não funcionam sem coordenadas precisas de GPS. Ou seja, duas empresas europeias podem causar um apagão em toda a comunicação do Daesh e, basicamente, anular o grupo, como denunciou a revista alemã Der Spiegel, no fim de 2015.

Por que não fazem? Porque isso seria anticapitalista: o lançamento de satélites é caro e a vida útil dos aparelhos não ultrapassa dez anos. Uma vez que eles estão em órbita, é preciso vender rapidamente os pacotes de dados para que eles se paguem. O problema é que a cobertura mundial de internet wireless é grande demais, falta mercado. O mercado de maior demanda hoje é justamente nos territórios ocupados pelo Daesh, em que a infra-estrutura de rede foi reduzida a zero. No fundo, o capitalismo financeiro global e o Daesh estão no mesmo jogo ultraliberal, cujas tintas políticas têm diferentes matizes de fascismo. Muda a peça, o produto anunciado e o grau de violência do anúncio, mas a lógica de substituição da razão pela emoção como maneira de vender um produto - seja o wahabismo, seja a cerveja - é a mesma desde Goebbels. 
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25 outubro, 2016

Comentário sobre a mística da revolução afroculturalista

Em seu mais famoso retrato, Huey Newton ressignifica símbolos tribais como ameaça de uma revolução futura

Culturalistas e revolucionários constituíram duas correntes ideológicas antagônicas no movimento negro americano da segunda metade dos anos 60. Enquanto os culturalistas acreditavam que tínhamos de pregar um retorno simbólico a uma África idealizada, incorporando "africanismos" à lógica capitalista, movimentos revolucionários como os Panteras Negras e o Move achavam que não existia emancipação dentro do capitalismo. Para eles, o processo de criar uma estética pseudo-africana não faria mais do que substituir os opressores brancos por opressores pretos. Eu, que sou mais fã de Malcolm X e Angela Davis que de Beyoncé e Kanye West, não acho que o culturalismo possa levar à "implosão da Casa Grande".

Isso caberia à revolução, que perdeu a luta pelo coração dos negros americanos. Símbolo dessa derrota é o fato de que Beyoncé, ícone culturalista por excelência, apareceu no Super Bowl fazendo uma ode ao capital fantasiada de Pantera Negra. Huey Newton se revirou no túmulo com essa apresentação, tenho certeza. Porque ela significou a incorporação da estética revolucionária pela ética culturalista. Um golpe duro no pensamento radical.

O culturalismo, como faceta "afrofriendly" do mau e velho capitalismo, devora a dimensão utópica da revolução e vomita apenas o "visual" Pantera Negra, sem nenhuma força mobilizadora. Transforma o punho cerrado em um Che Guevara com orelhas de Mickey. O tradição radical do pensamento afroamericano ensina que o racismo é um subproduto indispensável do capitalismo pós-escravista. Então, ao esvaziar a jaqueta preta de sentido, Beyoncé X quebrou uma fronteira simbólica para a dominação do culturalismo sobre a utopia de extinção do racismo.

O intelectual negro W.E.B Dubois já tinha constatado, antes mesmo de existirem culturalistas, que o reformismo negro prestaria um serviço ao capitalismo e, consequentemente, à ideologia racista. Insisto: é um erro achar que o culturalismo possa levar à implosão da Casa Grande. Se é assim, como se explica o fato de que a Casa Grande não só não implodiu como se sofisticou no país do afroculturalismo?

Não podemos esquecer que o "presidente negro" executou extra-judicialmente mais não-brancos ao redor do mundo do que qualquer branco que ocupou a Casa Gran... digo, Branca. O Estado comandado por Obama mata mais negros do que matava com Bush. Mas isso passa despercebido graças à lógica culturalista, que confunde um símbolo estético individual com um progresso social real, impedindo que esse avanço coletivo de fato aconteça. No Brasil, a gente também teve esse fenômeno. O fato de o movimento negro de São Paulo ter apoiado em massa o Celso Pitta foi perfeitamente coerente com a lógica culturalista.

O que não é coerente com a lógica culturalista é achar que, por meio dela, se possa chegar a um fim anticulturalista. Se implodir a Casa Grande é mesmo o que a gente quer, nossa cara é começar a pensar de verdade em como afundar de vez o capitalismo. Não me parece que seja se integrando a ele, ficando rico.

Texto escrito em 1º de abril de 2016
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Estado francês condecora o terrorismo e isso tem a ver com a Petrobras

 Hollande, praticamente no lavabo do Eliseu, entrega a Legion d'Honeur ao príncipe Saoud

É muito louco como o mundo das elites é pequenininho. Lembro da minha velha avó dizer que quem sai na porrada na rua é pobre; rico negocia a portas fechadas e sempre se entende. Sábia, negra e pobre Dona Zica. No Senado brasileiro, "esquerda" e direita se dão as mãos e entregam o patrimônio nacional enquanto a militância se arrebenta na rua pra defender a ordem democrática. E a gente ainda corre o risco de virar terrorista por uma lei proposta pelo "nosso" governo.

Mas o Brasil ainda é um tijolo intermediário da pirâmide global. Conforme se aproxima do topo, o cimento da solidariedade elitista tem mais liga. Se liga o que aconteceu aqui na França esses dias: ninguém viu, mas na última sexta-feira, o presidente "socialista" François Hollande - aquele mesmo que quer inscrever o Estado de Exceção na Constituição - condecorou o príncipe saudita Mohammed bin Nayef bin Abdelaziz Al Saoud com a Legião da Honra, a principal medalha do Estado francês. Foi tão na encolha que a imprensa daqui ficou sabendo pela agência de notícias saudita SPA. Todo mundo ligou pro Palácio do Eliseu e veio uma confirmação meio desbaratinada: "a gente dá isso aí pra todo mundo", respondeu a entourage do Hollande em francês melhor que o meu.

Agora, por que a condecoração causa constrangimento, se somos todos "potes" (camaradas)? Se, felizes e contentes, bombardeamos juntos o Estado Islâmico na Síria e assinamos contratos bilionários de vendas de armamentos? Por que o constrangimento, se a Arábia Saudita é idônea ao ponto de presidir o Conselho de Direitos Humanos da ONU? É que a Arábia Saudita promove e financia abertamente a internacionalização do fundamentalismo islâmico. E isso pega meio mal.

Eles dizem com todas as letras que quem não é muçulmano sunita tem que morrer. E, como falar gíria bem até papagaio aprende, eles colocam o plano pra funcionar, financiando a petrodólares a internacionalização da ideologia fundamentalista wahabista, base da jihad radical. Em casa, os sauditas seguem a mesma cartilha do Estado Islâmico: roubo, ranca a mão fora; pra ofensa ao rei, heresia e homossexualidade, a pena é decapitação; mulher adúltera morre apedrejada; um gorozinho é punido com 200 chibatadas em praça pública.

Isso se o infrator não for da família real, porque o príncipe Majed al Saud não precisou de mais do que umas poucas horas para infringir todas as disposições da sharia e tá de boa. O Daily Mail denunciou que, em setembro do ano passado, ele promoveu uma festa regada a prostitutas, álcool e cocaína em Beverly Hills, que incluiu sexo gay, cárcere privado e ameaça de morte contra três funcionárias da mansão onde ele estava, que se recusaram a prestar-lhe favores sexuais.

Mas o fato de eles curtirem uma sacanagem misógina, não darem a mínima para os direitos humanos e financiarem terroristas não tem tanta importância quanto o peso político-econômico de seus petrodólares. A Arábia Saudita tem tanto petróleo que consegue dar o tom do mercado energético global. É isso que faz com que a CIA atrele a proteção da família real saudita à segurança dos próprios Estados Unidos.

Aliás, a atual relação entre os aliados históricos Riad e Washington talvez seja o melhor exemplo do amigos, amigos; negócios amigos que impera no neoliberalismo transnacional. Eles vivem em uma simbiose esquisita: os sauditas têm medo que os americanos deixem o Oriente Médio e transformem a China em seu novo foco de interesse estratégico. Esse afastamento abriria espaço para o Irã xiita, principal inimigo da petromonarquia sunita. O petróleo a baixo custo impede a exploração comercial em larga escala do gás de xisto e obriga os Estados Unidos a continuarem sentados no elefante branco da guerra ao terror, uma briga ineficaz e já pouco rentável, resquício da década passada.

Paradoxalmente, pros Estados Unidos, é muito interessante ter um aliado capaz de controlar o mercado internacional de petróleo e calar a boca de inimigos na guerra energética que se anuncia, como Venezuela e Brasil. O preço historicamente baixo do petróleo é um tiro de drone na Petrobras e na PDVSA. Sorte dos EUA que a gente é gente é boa e não quer ser inimigo de ninguém: o governo Dilma já articulou com o PSDB a venda do pré-sal. Optamos por declarar W.O., num momento em que o preço do petróleo está artificialmente baixo, justamente para que a gente declare W.O. E tem fulano que acha que a crise na Petrobras é um problema interno. Falô. Petróleo? Problema interno?! Vai dizer também que foi o PT que inventou a corrupção e o Lula, a luta de classes?

A luta de classes é tão radical hoje quanto já foi no passado. A diferença é que a globalização ampliou as distâncias entre pobres e encurtou entre os ricos. É por isso que a França, defensora dos direitos humanos, das liberdades individuais, do direito dos homossexuais e da integração dos povos, festeja um ano dos atentados contra o Charlie Hebdo condecorando a monarquia que inventou - e sustenta por todos os meios possíveis - a doutrina wahabista, que forma todos os terroristas islâmicos.

Num jogo de elites neoliberais mui amigas, o governo só tá ali para servir de boi de piranha do interesse privado. O presidente absorve o impacto popular do injustificável, deixando o empresariado, invisível e anônimo, livre para barganhar vidas humanas. E a Arábia Saudita fica a vontade para continuar a ostentar o status de melhor mercado no Oriente Médio para os equipamentos militares ocidentais. Ainda que frequentemente, as armas vão parar na mão de grupos como a frente Al-Nusra, braço da Al-Qaeda na Síria, e até do próprio Estado Islâmico, o importante é fazer a indústria girar. Então, se a arma francesa terminar matando um francês, e daí? Com certeza, bala nenhuma vai atravessar a cabeça de um rico. Afinal, como dizia minha velha avó, só pobre briga mesmo.

Texto publicado originalmente em 9 de março de 2016
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24 outubro, 2016

O que pensava Flávio Renegado quando lançou seu primeiro disco

Renegado, em foto de Bárbara Dutra

"Nunca tive muito contato com meu pai", conta o rapper Renegado, constatando em si próprio a realidade de milhões de crianças de periferia. "Nas vezes que ele aparecia, sempre aparecia malandrão, né? Chapado e com o Bezerra da Silva debaixo do braço". A mãe, que "limpou muito chão de playboy" para criar os filhos, era solteira aos 21 anos e já alimentava duas bocas. Ao seu redor, surgiam exemplos e mais exemplos do que há de pior: bêbados, bandidos, traficantes, armas. O roteiro é a tragédia clássica do negro pobre. Mas, aos 27 anos, esse mineiro da comunidade Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte, contraria as estatísticas: "Não tenho nenhuma perfuração de bala no corpo, nenhuma cadeia e tenho uma perspectiva de vida palpável na música", despeja o rapper.

Perspectiva é modéstia e rapper é pouco para defini-lo. Com sua mistura indiscriminada de samba, reggae, ragga, MPB e o que mais lhe vier à cabeça, Renegado é hoje a maior revelação da música de Minas: ganhou dois prêmios Hutuz em 2008 (revelação e melhor site), lançou um disco independente (Do Oiapoque a Nova York) e outro demo, gravou em Cuba com Cubanito e Alayo, virou garoto-propaganda do programa Vozes do Morro do Governo Estadual, flertou com a MPB de Aline Calixto e já é figurinha carimbada dentro do movimento hip hop. Por fora, é ativista social e presidente da ONG Negros da Unidade Consciente.

"Eu não tenho gravadora, não tenho grandes investidores, não tenho nada do tipo. Tenho é muita vontade de trabalhar e pessoas que acreditam no mesmo sonho que eu". Apoiado pelos "parceiros de caminhada", Renegado quer ir além - e não só na música. O que ele deseja mesmo é um país mais justo, mais igualitário e com mais oportunidades. E o rap é um dos caminhos para isso porque é a "música da verdade. Pra quem tem verdade a ser transmitida, ele é um mecanismo de libertação". Se o papo lhe parece sério demais até aqui, meio sisudo até, é porque você não conhece o cara ainda: Renegado é todo sorridente. "A gente escuta: 'Tem que ser homem mau pra vencer essa guerra'. Muito pelo contrário, mau é quem nos oprimiu até agora. Nós estamos aqui mostrando que não queremos viver em guerra; queremos alcançar a paz". Por isso, ele garante que sua música não carrega o peso de quem mora na periferia, mas a esperança de mudar. E tudo isso sem perder a ginga, o suíngue e o flow, como ele gosta de dizer. Com vocês, Renegado:


Reprodução da capa do CD "Do Oiapoque a Nova York"

Afroências: Você prefere ser chamado de rapper, cantor ou prefere não ser chamado de nada?
Renegado: (Risos) Mano, acho que eu sou músico, tá ligado? E, acima de tudo, rap é a música que eu escolhi cantar. Hoje no meu trabalho, o rap é uma opção de música. Não é a única alternativa; meu trabalho dialoga o tempo inteiro com várias vertentes da música. Busco trazer isso pra dentro do rap. Eu me identifico muito com o rap porque ele é a música da verdade. Pra quem tem verdade a ser transmitida, ele é um mecanismo de libertação.

Renegado era apelido na quebrada ou é nome artístico?
Renegado: A princípio, foi um apelido que eu ganhei - eu não curtia muito, não. Minha mãe sempre foi muito sistemática com a nossa criação em casa, ela nunca gostou muito desse esquema de ter vulgo. Depois de um tempo, comecei a refletir melhor sobre esse nome e percebi que várias pessoas da quebrada são renegadas: às vezes, não temos condição de ter uma casa legal, de ter saneamento básico, de ter uma condição de vida digna de dizer que somos cidadãos, tá ligado? São bens comuns de sobrevivência que foram negados e re-negados. Por isso que eu adotei esse nome; para poder falar que, mesmo com todo o descaso e toda a revolta, a opção que nós temos não é portar arma como forma de vida. E é uma palavra forte, né, mano?

E ela tem o "nego" no meio, né? Todo mundo fala negação, mas ninguém fala brancação...
Renegado: É... Negação, mas não brancação (risos). Boa! Essa daí eu não tinha pensado, essa foi ótima. E é louco porque, ao mesmo tempo em que é uma palavra que traz essa vibe de ser algo negativo...

Outra palavra com nego...
Renegado: Tem várias! Se a gente for levantar assim, tipo... Denegrir, mano. Denegrir é f... Vamos denegrir tudo pra ver se fica um pouquinho mais preto. Mas então, essa parada do nome: também tem uma força, tem uma musicalidade dentro dele, que me atraiu muito.


"Bênção", de Renegado

A Dona Regina (mãe) acabou aceitando o vulgo?
Renegado: Ah, hoje ela já fala. Quando ela atende o telefone lá em casa, ela diz: "Aqui quem está falando é a mãe do Renegado!" (risos). Ela já se identifica. E a parada é a seguinte: nessa sociedade em que a gente vive, todo mundo tem que ser bonzinho o tempo inteiro, tem que ser heroi, cara. A gente tem que trabalhar um pouco a questão do anti-heroi, da contracultura... Até pra gente poder refletir um pouco, sair do lugar. Se a gente fica aceitando tudo o que está pronto e acabado, a gente não muda, né? Vamos ver se os renegados acordam aí pra poder escrever a própria história, né, irmão? Porque o tempo inteiro fica essa parada de gente dizer que nós somos descendentes de escravos... Meu ancestral não foi escravo, ele foi escravizado; é diferente.

Ninguém nasce escravo, né?
Renegado: Ninguém nasce escravo, como ninguém nasce Madre Tereza de Calcutá e ninguém nasce Fernandinho Beiramar, tá ligado? É tudo uma questão de sensibilidade e referencial. Nosso referencial, o tempo inteiro, é o cara da quebrada portando fuzil, o pai alcoólatra. Esses são os referenciais do nosso povo. Então, a gente tem que mudar um pouco essa perspectiva. Quando um moleque na quebrada me vê fazendo um comercial ou um show, ele fala: "Pô, aquele mano da quebrada está lá na televisão". E fala pra mim: "Continua aí, o trabalho tá legal". Ele começa a ter ourtas referências sendo construídas.

Você mistura samba, rap, reggae, tem um site muito louco, de alta tecnologia, não tem qualquer barreira. De onde vem essa força pra desbravar culturas?
Renegado: A primeira coisa que a gente tem que ter é acreditar que sempre é possível sonhar. Se a gente acha que tudo é difícil... Tudo é difícil mesmo, mas se a gente entrar no jogo achando que já perdeu, melhor nem entrar em campo. Eu não tenho gravadora, não tenho grandes investidores, não tenho nada do tipo. Tenho é muita vontade de trabalhar e pessoas que acreditam no mesmo sonho que eu. Então, eu vou colhendo parceiros no decorrer da caminhada e, com isso, o trabalho vai se construindo e se consolidando também. Nessas, tivemos em 2008 a felicidade de ganhar o prêmio de melhor site de hip hop no Hutuz... Também ganhei o prêmio de Rapper Revelação em 2008. Então, saí de Belo Horizonte, ninguém me conhecia e já pude alcançar outro patamar. Hoje, nós estamos circulando o país, fazendo show em Brasília, Goiânia, Cuiabá, São Paulo, Rio, Campinas... O trabalho está se sustentando. E o tempo inteiro, a gente recebe palavras de "desincentivo": "Isso é difícil, isso não dá...". Esse pensamento nós temos que mudar. Eu não construí nenhuma fronteira, você construiu?

Não.
Renegado: Então, mano... Minha palavra de ordem é quebrar fronteiras e estabelecer diálogos.

Como foi seu primeiro contato com a música?
Renegado: Meu primeiro contato com cultura de uma forma geral foi quando eu entrei num grupo de capoeira lá na minha comunidade. Fiquei nesse grupo durante cinco anos. Quando eu tinha 13 anos de idade, eu estava na casa de um amigo e estávamos nós dois ouvindo uma rádio comunitária que tocou "Fim de semana no parque", dos Racionais MCs; e "Corpo fechado", de Thaíde e DJ Hum, na sequência. Aí eu falei: "É essa parada que eu quero fazer". Me identifiquei na hora. Mas eu sempre tive contato com a música. Minha mãe ouvia aquelas rádios que tocam música romântica no final da noite. Era Roberto Carlos, Tim Maia... E gravava num gravador que a gente tinha em casa. Meu pai sempre foi muito ausente, nunca tive muito contato com ele, mas nas vezes que ele aparecia, sempre aparecia malandrão, né? Chapado e com o Bezerra da Silva debaixo do braço (meio riso). Essas coisas que foram me pautando pra que, quando eu tive oportunidade de conhecer o rap, eu pudesse aplicar tudo isso dentro da minha música.

Então sua formação foi pelo rádio?
Renegado: Sim. A vida inteira, né, mano? E hoje o meu som toca na rádio também. Então, eu tô sendo referencial pra outros moleques também.

E como é que é essa história de Nova York?
Renegado: Quando eu fui fazer o disco, eu quis trazer a questão da mistura e do diálogo pra dentro do trabalho. Pô, nós temos aqui um rico histórico musical nacional e, naquele momento, o rap nacional ainda não tinha aprendido a se tornar um rap brasileiro. Eu resolvi fazer mistura; e peguei a referência do rap como a música pop do mundo - Nova York como pilar dessa globalização. Eu pensei: "Vou falar do Brasil aos Estados Unidos"; e escolhi esse nome, mais brasileiro e mais world music possível: Do Oiapoque a Nova York.


Conexão Alto Vera Cruz/Havana, no Estúdio Show Livre


Entre Oiapoque e Nova York tem Havana, né (uma das músicas de Renegado, chamada Conexão Alto Vera Cruz/Havana, tem participação de músicos cubanos)?
Renegado: Tem América Latina inteira, irmão.

Falo especificamente da música Conexão Alto Vera Cruz/Havana: começa com batida de terreiro, cita o candomblé, cita a santeria. Quer dizer, é uma música panafricanista. A mensagem que ela me passa é que todos os negros são filhos de uma mesma mãe África.
Renegado: Sim. Irmão, eu acho que a África é o grande berço de tudo, tá ligado? Quando eu comecei a produzir o disco, ouvi muita coisa do Senegal, do Quênia. Queria uma referência de por onde transitar com o trabalho. Quando a gente busca nossas raízes, a gente tem perspectiva de enxergar o futuro. Quando eu entendi essa parada, falei: "Opa, 'pera aí'. Vamos lá na África, vamos em Nova York, vamos entrar em conexão com tudo que existe". Isso abriu o diálogo. E raiz é isso. Fiz essa música em 2004, quando fui a Cuba. E ela continua atual. Acho que se a gente ouvir daqui a cinco anos, ela vai continuar atual.

Como foi a viagem para Cuba?
Renegado: Ficamos 15 dias lá. Nossa, mano, é uma ilha mágica. Você vê o povo sobrevivendo em condições precárias, por causa do embargo e da própria ditadura. Claro que a revolução é bacana, mas ditadura tem suas desvantagens. Mas o povo é igual ao povo brasileiro! Eu fiquei em Vedado (bairro de Havana). Eu andava Vedado, achei que estava no Alto Vera Cruz. Tranquilo: povo rindo, a vibe boa, mulheres bonitas, andando com a auto-estima em alta. Que da hora aquele lugar! Lá não tem essa questão de preconceito racial igual ao que tem aqui: o pessoal lá é cubano e tá tudo certo. Não tem essa vibe, tudo é energia; tranquilidade.

Por falar em preconceito racial, o candomblé tem sido muito judiado, principalmente por algumas igrejas evangélicas que têm, inclusive, convertido muitos negros. Você é um cara que fala livremente do candomblé na sua música. Esse é um caminho pra salvar essa parte cultura negra de tanto preconceito?
Renegado: A base de tudo no mundo é a educação. Enquanto a educação no nosso país for ineficiente, nós vamos ter esse retrocesso no sentido de respeitar outras etnias, outras crenças e os outros indivíduos da nossa sociedade. O nosso povo aceita essa coisa das outras religiões serem impostas porque nossa história foi queimada. Ela não foi estudada quando a gente era criança e continua não sendo estudada agora, com a gente um pouco maior. Hoje, nós temos construções que ajudam a melhorar esse processo, como a lei que (obriga) o estudo da história africana nas escolas. Então, daqui a pouco, nós vamos ter uma outra mentalidade sendo construída em torno das religiões de matriz africana - o povo vai começar a entender a nossa história. Porque o povo que não tem história não tem auto-estima, não tem conhecimento, não tem perspectiva. É disso que nosso povo está precisando: conhecer quem são nossos ancestrais e entender para onde o mundo está nos guiando. Acho que aí a gente vai ter a tranquilidade para respeitar a religião e a cultura do outro sem precisar impor a nossa. A fase de colonização já passou, mas a gente ainda vive ela quando liga a televisão ou quando vai a um culto religioso. Mas com o tempo, isso tudo vai ser vencido.

Foi com essa ideia na cabeça que você criou a ONG Negros da Unidade Consciente?
Renegado: Foi com a ideia de ter perspectiva de vida e atuação na comunidade... Tudo isso sem perder o flow, né (risos)? Porque isso nós temos que ter o tempo inteiro: nossa ginga e o nosso suíngue.

Por falar em não perder o flow, você é um rapper que não tem vergonha de sorrir - quem vê a capa do seu disco demo não fala que é rap. Cara feia no rap é coisa do passado?
Renegado: Não vou nem dizer que é coisa do passado. Só acho que o rap está passando por uma fase de transição. A gente escuta: "Tem que lutar, tem que ser homem mau pra vencer essa guerra". Muito pelo contrário, mau é quem nos oprimiu até agora. Nós estamos aqui mostrando que não queremos viver em guerra; queremos alcançar a paz. Por isso, mano, a gente tem que ter sorriso, tem que ter verdade, tem que ter tranquilidade pra poder guiar esse momento. Acho que a minha música não tem o peso de quem mora na periferia; ela tem é a perspectiva de melhora pra quem mora na periferia. Se a gente ficar na bad trip o tempo inteiro, é complicado demais. Nosso povo é batalhador, é guerreiro, mas se diverte também: faz música boa, joga muito futebol, faz samba, tá ligado? É nossa história, é nossa raiz. Não tem como a gente negar isso daí.

Você já teve bastante contato com a mídia?
Renegado: Tive sim. E vou te falar que o meu trabalho é muito bem aceito pela mídia, principalmente a impressa. O pessoal tem uma atenção muito grande, observa e respeita muito. Eu sou muito feliz por isso. Mas eu acho que ainda é pouco. Temos que ter quatro Manos & Minas (programa da TV Cultura), temos que ter vários jornais e várias revistas para divulgar os nossos feitos. E acho que a gente tem que ocupar mesmo a mídia porque são mais de 60 milhões de negros que assistem a TV no domingo à tarde, tá ligado? A gente tem que estar lá pro cara poder olhar e falar: "Opa, olha a gente lá!".


Renegado canta "Do Oiapoque a Nova York" no Manos & Minas
Então dá para fazer da mídia uma aliada?
Renegado: Eu não diria aliada. A mídia é uma ferramenta que a gente precisa aprender a utilizar, como utiliza hoje Twitter, Facebook, Orkut, email.

Falando especificamente desse show de sexta-feira, o que você vai apresentar para o público de São Paulo?
Renegado: Vou apresentar o repertório do disco, com algumas músicas inéditas também e algumas releituras - tô começando a trazer isso pra dentro do universo do rap. Acho que está na hora de a gente estabelecer um diálogo maior com a música brasileira. Então, vou cantar Tim Maia, Chico Buarque e vou ter essa participação maravilhosa do Marcelinho da Lua.

Quando você era moleque lá no Alto Vera Cruz, qual era seu maior sonho?
Renegado: (Silêncio) Essa é boa (risos). Eu ainda sonho demais quando eu estou lá no Alto Vera Cruz, tá ligado? Acho que ali eu sou moleque. Mas uma coisa que eu sempre quis fazer foi transformar aquela comunidade de verdade. Hoje a gente já conseguiu várias obras de orçamento participativo, estamos abrindo as ruas na comunidade, canalizando; estamos mudando o cotidiano das pessoas que estão lá. O meu sonho era ser referência na minha comunidade. Acho que até comecei a extrapolar, começamos a quebrar as fronteiras do Alto Vera Cruz e ir pra outras - pra cidade, pro estado...

Pra BH, pro Brasil, pro Oiapoque, pra Nova York?
Renegado: (Risos) Por exemplo, né, mano? A próxima tentativa é isso. Acho que é isso, bicho, acho que a cada dia o sonho se renova. E isso é o mais importante: a gente sempre tem que sonhar para alcançar um outro sonho.
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"Segurança virou instrumento de propaganda", diz Marcelo Freixo

Marcelo Freixo concede entrevista na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2015. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O número de homicídios no estado do Rio de Janeiro cresceu 16% entre os anos de 2012 e 2013. Embora alarmante, o dado divulgado pelo ISP (Instituto de Segurança Pública) nesta terça-feira (18 de março de 2014) é apenas mais um entre vários indícios de uma crise generalizada no sistema carioca de segurança. São tantos e tão sintomáticos os casos extremos de violência que é até difícil elencá-los. No início de fevereiro, o Aterro do Flamengo viu uma reconstituição grotesca dos pelourinhos de outrora: um negro menor de idade foi subitamente julgado como ladrão, amarrado nu a um poste e espancado por justiceiros.

Antes disso, em dezembro, um morador de rua que carregava uma garrafa de água sanitária e outra de desinfetante foi preso e transformado em bode expiatório das manifestações da metade do ano passado. É até agora o único condenado pelos supostos excessos dos movimentos. Detalhe observado pelo deputado estadual e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Marcelo Freixo (PSOL): Rafael Vieira "sequer sabia quem era o Governador do Rio de Janeiro".

No último sábado, quatrocentos policiais - cem deles do Batalhão de Operações Especiais, o BOPE - foram deslocados para áreas sensíveis de favelas "pacificadas" na Zona Norte do Rio de Janeiro. O reforço é uma resposta estatal aos mais recentes ataques às unidades de polícia pacificadora. Desde a instalação das UPPs, em 2008, 11 policiais que integravam essas unidades foram assassinados. Ao falar com a imprensa durante a reocupação de favelas no Complexo do Alemão e na Penha, o coronel Frederico Caldas abandonou a lógica da polícia comunitária e declarou: "a resposta será extremamente dura".

Miopia e daltonismo
O problema é que as respostas "extremamente duras" da Polícia Militar são seletivamente míopes. Haja vista o registro inicial do assassinato de Cláudia Silva Ferreira, baleada por PMs na zona norte do Rio e arrastada por uma viatura policial por 350 metros no último fim de semana. No primeiro relatório sobre a morte, os militares fizeram um "auto de resistência", segundo o qual a vítima teria reagido violentamente a ordem policial. Cláudia era servente e não trazia nada além de um copo de café nas mãos. Curiosamente, a grande maioria das vítimas letais da violência policial é registrada sob os tais autos de resistência. Se eles são todos verdadeiros, só em 2007, 1330 pessoas reagiram violentamente à polícia no Estado do Rio, informa relatório do ISP.

Embora sejam míopes, as respostas policiais não são daltônicas, dada a quantidade de negros enquadrados e presos de forma arbitrária na cidade. Até o ator da Globo Vinicius Romão foi vítima da prisão provisória, uma medida restritiva de liberdade que, teoricamente, só deveria ser aplicada quando o acusado oferece perigo grave. Ou melhor, quando ameaça o princípio de "garantia da ordem pública" - um entre muitos resquícios da Ditadura Militar em nosso código penal - que, na prática, outorga aos magistrados uma premissa subjetiva de execução da pena. Romão, que é negro, passou 16 dias atrás das grades. Mas a libertação rápida não é a regra para a maior parte dos presos provisórios, que compõem quase 40% da população carcerária carioca.

Apesar do anacronismo do princípio, em 2011, os juízes optaram pela prisão provisória em 79% dos casos de detenção em flagrante, independentemente da periculosidade dos detidos ou mesmo da gravidade dos crimes. Os dados são do estudo "Usos e abusos da prisão provisória no Rio de Janeiro", realizado pela Associação pela Reforma Prisional (ARP), em parceria com o CESEC, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes.
É neste cenário caótico que trabalha Marcelo Freixo. Uma tarefa árdua, já que acumulam-se sobre a mesa do deputado todos estes casos que, em conjunto, mostram o quão doente está a Segurança Pública no Estado. Leia a seguir entrevista com Freixo.

Gabriel Rocha GasparDeputado, aqui na França, desde que foram instaladas, as UPPs foram frequentemente mostradas na imprensa como uma solução milagrosa para a segurança pública no Rio. Seis anos depois da primeira UPP, este tipo de unidade já foi alvo de vários ataques. As UPPs, do jeito que elas foram pensadas e instaladas, constituem um sistema intrinsecamente defeituoso?
 Marcelo Freixo - Olha, primeiro que não existe uma solução mágica para a segurança pública nem do Rio de Janeiro nem de nenhum outro lugar. É falsa a polêmica de quem é favorável ou contra as UPPs como se o debate das UPPs resumisse todos os debates de segurança pública no Rio de Janeiro. Nós não temos uma nova polícia, não temos um outro treinamento, não temos uma vigilância sobre a polícia, não temos ouvidorias, não temos corregedorias eficientes, os salários são absolutamente aviltantes, não há um treinamento novo, adequado e preparado para uma outra lógica de segurança pública. Então, nós temos problemas estruturais que não foram tocados, sequer tocados. Então, evidentemente, não há solução mágica para a segurança pública.

O problema é que a segurança virou já há bastante tempo, não só neste governo, um instrumento de propaganda. Então, nas áreas em que você consegue fazer propaganda, ótimo. As áreas em que você não consegue fazer propaganda, você esquece e torna invisíveis. É o caso da área do 9° Batalhão (de Polícia Militar, em Rocha Miranda), em que tivemos um episódio neste domingo dos mais absurdos, onde uma mulher foi arrastada por um carro da polícia pendurada pela roupa na caçamba. Não sei nem se vocês já tiveram acesso a essa imagem, mas é uma imagem absurda de uma mulher morta pela polícia, colocada na caçamba. Ela cai, fica presa pela roupa e é arrastada pelas ruas na área do 9° Batalhão. É uma área que está muito longe de qualquer propaganda de segurança pública. Uma área onde nós tivemos 18 autos de resistência, 18 pessoas mortas pela polícia no ano passado. Isso dá mais de uma pessoa por mês. (Uma área) onde os roubos aumentaram de 6,9 mil para 8.146. O homicídio saiu de 143 para 173, só nessa área. Uma área de disputa de milícia e tráfico...

O que se espera? Que todo o Rio de Janeiro tenha uma UPP? Que cada favela do Rio de Janeiro, das mais de mil, tenha uma UPP? Um Estado Militar? Isso não é factível. Então, o debate da Segurança Pública é muito mais profundo do que o debate das UPPs. O debate das UPPs em si merece todo um acompanhamento, todo um conjunto de críticas. Não pode ser visto como algo favorável ou contra, (como) se isso resumisse todo o debate.

No fim do ano passado, você entrevistou o Rafael Braga Vieira, primeiro condenado pelas manifestações da metade do ano...
Primeiro e único.

E único ainda. E tenho visto também sua militância com relação aos casos de racismo no Judiciário, inclusive dentro da Comissão dos Direitos Humanos que você preside. O racismo é exceção ou modus operandi no Judiciário carioca? Como isso se relaciona com a questão da segurança pública de modo geral?
O Brasil passou muitos anos, alguns séculos, com a escravidão. Nós fomos escravocratas (durante) toda a colônia, todo o império e não resolvemos a escravidão na República. Então, as nossas instituições estão absolutamente carregadas por um olhar racista. Isso não só o Judiciário, mas o Executivo, o Legislativo, o Ministério Público, as nossas polícias. O racismo não aparece no Brasil apenas numa declaração racista ou num preconceito ou num estádio de futebol. O racismo está inserido no dia-a-dia das instituições.

Basta a gente olhar para o sistema prisional do Brasil que a gente constata o que significa. Basta você ver a forma de abordagem nas ruas, a lógica da segurança pública, que continua sendo a busca do inimigo, do elemento suspeito. A questão social no Brasil é muito marcante. O Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. Ela se mistura de uma maneira muito contundente com a questão racial. A gente não consegue separar, na história do Brasil, a questão social da questão racial.
Nós tivemos agora um episódio muito grave de um rapaz confundido com um assaltante, que foi detido. O azar é que ele era ator, da Rede Globo inclusive, tinha feito uma novela na Rede Globo, e a única razão de ele não ter sido investigado - porque ele foi reconhecido pela pessoa que assaltou - é porque ele era negro. E isso aconteceu na Zona Norte do Rio de Janeiro. Então, evidentemente a nossa Justiça Criminal, assim como diversos outros poderes, tem - e muito - no seu dia-a-dia, na sua estrutura, uma prática racista.

Enquanto o Rafael Vieira foi condenado...
O Rafael continua preso, estivemos com ele ontem (17/03), por coincidência. Ontem, nós levamos a mãe do Rafael para visitá-lo. Foi a primeira vez que a mãe visitou, porque é uma pessoa muito pobre, que não tem sequer o dinheiro da passagem para poder ir ao presídio. Ontem, nós conseguimos a viabilidade de ela ir com alguma frequência lá, a gente conseguiu a transferência do Rafael para um outro presídio, onde ele vai ter a chance de fazer algum curso profissionalizante, que é o que ele quer.
Enfim, a gente acompanha o caso dele muito de perto, mas é um absurdo porque o Rafael evidentemente não tem qualquer possibilidade de ser um manifestante, não tem nenhuma chance de ele ter cometido o crime pelo qual ele foi acusado, julgado e condenado. Enfim, as provas são absolutamente frágeis, inclusive contrariando a própria perícia, que diz que o material encontrado com ele não era um material inflamável. Mas é isso: é o único manifestante de todas as manifestações que ocorreram no Brasil condenado. Morador de rua, que sequer sabia quem era o governador do Rio de Janeiro.

E ele foi condenado a cinco anos de cadeia enquanto que os PMs que arrastaram a Claudia Ferreira da Silva foram enquadrados no artigo 324 do Código Penal Militar, definido assim: "deixar, no exercício da função, de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar". Agora, não entendo porque não homicídio triplamente qualificado e formação de quadrilha. Desmilitarizar a polícia não ajudaria a acabar com este tipo de distorção?
Eu acho que isso é fundamental, não só por isso. Nossa polícia é completamente esquizofrênica, não existe esse modelo de polícia em qualquer lugar do mundo. É uma herança da Ditadura Militar, que a gente precisa superar. É ineficiente e é violenta. A gente não tem qualquer ganho. Não é uma polícia preparada para conviver com a democracia porque sequer ela convive internamente com a democracia. Faz dos próprios policiais e da sociedade, vítimas de um modelo de segurança, que não se justifica em nenhuma, nenhuma hipótese. Hoje, nós temos uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) tramitando, a PEC 51, que foi apresentada pelo Senador Lindbergh (Farias, PT-RJ) e idealizada pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares. Sem dúvida nenhuma, é uma possibilidade de avanço, um ponto de partida para um debate mais concreto, difícil, difícil de ser ampliado no Brasil porque a resistência é muito grande. Mas sem dúvida, uma das maiores necessidades que nós temos.

Mas é um debate que começou a aparecer com mais frequência desde as manifestações, não, deputado?
Sem dúvida alguma. Não era uma pauta inicial das manifestações. Eu trabalho com esse tema há muitos anos e sei que esse tema sempre reuniu um número muito pequeno de pessoas interessadas. Ele diz respeito à própria parte da segurança pública. Só que a própria violência policial nas manifestações... As manifestações permitiram que a sociedade conhecesse uma polícia violenta que nós sempre tivemos. Só que ela sempre foi direcionada para a periferia, para a favela e para um determinado setor da sociedade. As manifestações fizeram com que essa violência policial fosse generalizada para o conjunto da sociedade. Então, o debate da desmilitarização da polícia ganha as pautas, aparece nas manifestações a partir da própria violência policial nas manifestações. Se você olhar as manifestações anteriores ou iniciais, elas não tinham essa pauta. Esse cartaz não aparecia. E depois se transforma, talvez, na principal pauta, junto com o questionamento da Copa do Mundo.

Você foi vítima de um processo de difamação irresponsável e até obtuso iniciado pelo jornal O Globo. Por que eles querem tanto te tirar de cena?
O Globo faz parte deste projeto de cidade-negócio. O Globo é sócio. A empresa Globo é sócia desse projeto de cidade-business, cidade-negócio, cidade-commodity, como eles gostam de chamar. Olha para a cidade e vê cifrão, não olha para a cidade e vê pessoas. Então, eles estão na disputa da cidade e tentam eliminar aqueles que eles elegem inimigos dessa disputa, desse projeto de cidade. Eu realmente não estou do lado deles. O problema é que a gente espera sempre que a luta política seja feita com o mínimo de integridade e honestidade. Não foi o caso deles neste momento.

Matéria publicada originalmente pela Radio France Internationale, a 19 de março de 2014
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