25 outubro, 2016

Estado francês condecora o terrorismo e isso tem a ver com a Petrobras

 Hollande, praticamente no lavabo do Eliseu, entrega a Legion d'Honeur ao príncipe Saoud

É muito louco como o mundo das elites é pequenininho. Lembro da minha velha avó dizer que quem sai na porrada na rua é pobre; rico negocia a portas fechadas e sempre se entende. Sábia, negra e pobre Dona Zica. No Senado brasileiro, "esquerda" e direita se dão as mãos e entregam o patrimônio nacional enquanto a militância se arrebenta na rua pra defender a ordem democrática. E a gente ainda corre o risco de virar terrorista por uma lei proposta pelo "nosso" governo.

Mas o Brasil ainda é um tijolo intermediário da pirâmide global. Conforme se aproxima do topo, o cimento da solidariedade elitista tem mais liga. Se liga o que aconteceu aqui na França esses dias: ninguém viu, mas na última sexta-feira, o presidente "socialista" François Hollande - aquele mesmo que quer inscrever o Estado de Exceção na Constituição - condecorou o príncipe saudita Mohammed bin Nayef bin Abdelaziz Al Saoud com a Legião da Honra, a principal medalha do Estado francês. Foi tão na encolha que a imprensa daqui ficou sabendo pela agência de notícias saudita SPA. Todo mundo ligou pro Palácio do Eliseu e veio uma confirmação meio desbaratinada: "a gente dá isso aí pra todo mundo", respondeu a entourage do Hollande em francês melhor que o meu.

Agora, por que a condecoração causa constrangimento, se somos todos "potes" (camaradas)? Se, felizes e contentes, bombardeamos juntos o Estado Islâmico na Síria e assinamos contratos bilionários de vendas de armamentos? Por que o constrangimento, se a Arábia Saudita é idônea ao ponto de presidir o Conselho de Direitos Humanos da ONU? É que a Arábia Saudita promove e financia abertamente a internacionalização do fundamentalismo islâmico. E isso pega meio mal.

Eles dizem com todas as letras que quem não é muçulmano sunita tem que morrer. E, como falar gíria bem até papagaio aprende, eles colocam o plano pra funcionar, financiando a petrodólares a internacionalização da ideologia fundamentalista wahabista, base da jihad radical. Em casa, os sauditas seguem a mesma cartilha do Estado Islâmico: roubo, ranca a mão fora; pra ofensa ao rei, heresia e homossexualidade, a pena é decapitação; mulher adúltera morre apedrejada; um gorozinho é punido com 200 chibatadas em praça pública.

Isso se o infrator não for da família real, porque o príncipe Majed al Saud não precisou de mais do que umas poucas horas para infringir todas as disposições da sharia e tá de boa. O Daily Mail denunciou que, em setembro do ano passado, ele promoveu uma festa regada a prostitutas, álcool e cocaína em Beverly Hills, que incluiu sexo gay, cárcere privado e ameaça de morte contra três funcionárias da mansão onde ele estava, que se recusaram a prestar-lhe favores sexuais.

Mas o fato de eles curtirem uma sacanagem misógina, não darem a mínima para os direitos humanos e financiarem terroristas não tem tanta importância quanto o peso político-econômico de seus petrodólares. A Arábia Saudita tem tanto petróleo que consegue dar o tom do mercado energético global. É isso que faz com que a CIA atrele a proteção da família real saudita à segurança dos próprios Estados Unidos.

Aliás, a atual relação entre os aliados históricos Riad e Washington talvez seja o melhor exemplo do amigos, amigos; negócios amigos que impera no neoliberalismo transnacional. Eles vivem em uma simbiose esquisita: os sauditas têm medo que os americanos deixem o Oriente Médio e transformem a China em seu novo foco de interesse estratégico. Esse afastamento abriria espaço para o Irã xiita, principal inimigo da petromonarquia sunita. O petróleo a baixo custo impede a exploração comercial em larga escala do gás de xisto e obriga os Estados Unidos a continuarem sentados no elefante branco da guerra ao terror, uma briga ineficaz e já pouco rentável, resquício da década passada.

Paradoxalmente, pros Estados Unidos, é muito interessante ter um aliado capaz de controlar o mercado internacional de petróleo e calar a boca de inimigos na guerra energética que se anuncia, como Venezuela e Brasil. O preço historicamente baixo do petróleo é um tiro de drone na Petrobras e na PDVSA. Sorte dos EUA que a gente é gente é boa e não quer ser inimigo de ninguém: o governo Dilma já articulou com o PSDB a venda do pré-sal. Optamos por declarar W.O., num momento em que o preço do petróleo está artificialmente baixo, justamente para que a gente declare W.O. E tem fulano que acha que a crise na Petrobras é um problema interno. Falô. Petróleo? Problema interno?! Vai dizer também que foi o PT que inventou a corrupção e o Lula, a luta de classes?

A luta de classes é tão radical hoje quanto já foi no passado. A diferença é que a globalização ampliou as distâncias entre pobres e encurtou entre os ricos. É por isso que a França, defensora dos direitos humanos, das liberdades individuais, do direito dos homossexuais e da integração dos povos, festeja um ano dos atentados contra o Charlie Hebdo condecorando a monarquia que inventou - e sustenta por todos os meios possíveis - a doutrina wahabista, que forma todos os terroristas islâmicos.

Num jogo de elites neoliberais mui amigas, o governo só tá ali para servir de boi de piranha do interesse privado. O presidente absorve o impacto popular do injustificável, deixando o empresariado, invisível e anônimo, livre para barganhar vidas humanas. E a Arábia Saudita fica a vontade para continuar a ostentar o status de melhor mercado no Oriente Médio para os equipamentos militares ocidentais. Ainda que frequentemente, as armas vão parar na mão de grupos como a frente Al-Nusra, braço da Al-Qaeda na Síria, e até do próprio Estado Islâmico, o importante é fazer a indústria girar. Então, se a arma francesa terminar matando um francês, e daí? Com certeza, bala nenhuma vai atravessar a cabeça de um rico. Afinal, como dizia minha velha avó, só pobre briga mesmo.

Texto publicado originalmente em 9 de março de 2016
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