24 outubro, 2016

Beyoncé fantasiada de Pantera Negra é que nem a Barbie fantasiada de preta


Beyoncé apareceu de Pantera Negra no Superbowl. Da hora, é como se o Roberto Carlos fizesse uma homenagem à Aliança Libertadora Nacional no Especial de Fim de Ano da TV Globo. Mas chamar de revolucionário, comparar com John Carlos e Tommy Smith nas Olimpíadas de 68, como eu vi a rapaziada fazendo aí, é, no mínimo, exagero. A performance da Beyoncé não é nada disso. Ela apoia os Panteras Negras como grife, não como movimento político.

O eterno ministro da Defesa dos Panteras Negras, Huey P. Newton, deve ter revirado no túmulo com a apropriação que ela fez da estética black power e do X do Malcolm X. Porque tanto o X quanto a jaqueta preta são a afirmação política de que a cultura negra foi usurpada durante a escravidão. A Nação do Islã, grupo em que Malcolm X se formou como ativista, substituía os sobrenomes dos pretos por uma incógnita matemática. Era impossível saber o "verdadeiro" sobrenome de um preto. Os sobrenomes cristãos são herança dos antigos senhores de escravos, a indicação de que aquele negro pertencia a tal família. Assim, o sobrenome ocidental de todo negro é um título de propriedade, como uma marca a ferro quente.

A jaqueta preta dos Panteras também era uma incógnita, que respondia ao nacionalismo cultural. Esse "nacionalismo de churrasco", como dizia Huey Newton era uma filosofia afrocêntrica dos anos 60 que pregava um retorno cultural à África. Os partidários dessa ideologia se vestiam com dashiki nigeriano, usavam gírias inspiradas livremente em palavras africanas, comiam comida pseudo-africana e só compravam produtos de comerciantes pretos.

"Os nacionalistas culturais acreditam que um retorno à velha cultura africana vai permitir que eles reconquistem sua identidade e liberdade. Em outras palavras, eles acham que uma cultura 'africana' vai trazer liberdade política automaticamente", disse Huey Newton em uma entrevista de 1967 reproduzida no livro The Genius of Huey Newton. Não tem dashiki que indique de fato quem eu sou, diria Huey Newton. Pelo contrário, o dashiki não é mais do que sintoma de uma visão preconceituosa criada pelos brancos, que vê a África inteira como um país homogêneo e estereotipado. Não é mais do que um produto na prateleira de um comerciante preto.

Pros Panteras, o culturalismo é sempre reacionário. Eles nunca negligenciaram nosso direito de reivindicar nossas raízes; isso é fundamental, é o início da luta. Temos que saber quem somos, mas não para viver de um passado idealizado, mas pra idealizar o futuro. Como disse o outro fundador do partido, Bobby Seal, no livro Seize the Time, "não enfrentamos racismo com racismo. Enfrentamos racismo com solidariedade. Não enfrentamos capitalismo explorador com capitalismo negro. Enfrentamos capitalismo com socialismo. E enfrentamos imperalismo com internacionalismo proletário". Se hoje Bobby Seal fosse acrescentar uma frase a esse trecho, provavelmente escreveria: não enfrentamos falta de representatividade com Barbie preta.

A Barbie preta é igual ao dashiki: um branco decide que a gente é assim ou assado e vende pros pretos um estereótipo reducionista de nós mesmos. E a mensagem no fundo é a mesma de sempre, que vai desagregar qualquer pobre em qualquer lugar, independentemente da cor: ser é consumir. Ué, o slogan da Barbie é esse: "tudo que você quer ser". Só que ela mesma não é nada. Ela é a mina do Ken. Quem? Ela é a dona do carro da Barbie, dona da casa da Barbie, dona do cachorro da Barbie. A medida do "ser" dela é o "ter". Firmeza, se não dá pra matar a Barbie, é melhor ter Barbie preta do que só ter Barbie branca. Mas o ideal mesmo era não ter Barbie nenhuma. Acreditar que a Barbie preta representa alguma mudança pra negrada é que nem acreditar que o Celso Pitta é um prefeito pros pretos, coisa que o movimento negro de São Paulo fez em massa. Formation, essa faixa que a Beyoncé cantou no Super Bowl, é o hino da Barbie preta:

When he fuck me good I take his ass to Red Lobster, cause I slayQuando ele me fode bem, eu levo ele pra comer lagosta, porque eu eu sou foda

If he hit it right, I might take him on a flight on my chopper, cause I slaySe ele mandar bem, eu levo ele pra voar no meu helicóptero, porque eu sou foda

Drop him off at the mall, let him buy some J’s, let him shop up, cause I slayLargo ele no shopping, deixo ele comprar o que quiser, porque eu sou foda

I might get your song played on the radio station, cause I slayPosso conseguir que sua música toque no rádio, porque eu sou foda

You just might be a black Bill Gates in the making, cause I slayVocê pode até ser um futuro Bill Gates preto, porque eu sou foda

Cantar isso aí com a estética dos Panteras Negras é um requinte de crueldade. É dar à jaqueta preta o sentido do dashiki, transformá-la na marca de um culturalismo apolítico. É transformar deliberadamente uma estética revolucionária num produto, esvaziando totalmente a principal demanda do Partido dos Panteras Negras para a Auto-Defesa: a transformação radical da sociedade por meio da expropriação dos meios de produção da burguesia. E não para formar uma burguesia preta, mas para distribuir recursos de forma igualitária.

Difícil encontrar coisa mais reacionária do que eliminar o revolucionário de nossos movimentos políticos. Se Beyoncé tivesse expressado apoio ao Black Lives Matter e só, beleza, eu acharia foda. Mas eu acho que não dá para esvaziar os Panteras Negras desse jeito. É uma sacanagem com essas pessoas que dedicaram as vidas a uma causa revolucionária. Você pode comprar um Big Mac sem maionese, comprar o disco da Beyoncé só com as faixas que você curte. Mas não pode mandar tirar a política da sua revolução.

Texto publicado originalmente em 11 de fevereiro de 2016

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