11 junho, 2018

Alvo

 
Por Arape Sango*

É assustador quando começamos a fazer algumas comparações. Comparações entre a vida de pessoas que moram tão próximas de nós; e descobrimos o quanto são distantes da nossa realidade.

Há pouco tempo, um amigo me contou sobre um assalto que sofreu. Estávamos os dois em uma mesa na calçada de um bar próximo à Consolação.

Eu, um homem negro de 30 anos, história comum. Ele um homem de 29 anos, branco, de classe média.

Ele me contou que tudo durou poucos segundos. Ele saiu do carro, um rapaz o abordou armado, pediu carteira e celular e saiu. Ele obedeceu, não reagiu.

O monólogo do meu amigo nada teve a ver com o prejuízo. Nem com o transtorno de ter que tirar novos documentos. Teve a ver com o que ele sentiu nos poucos segundos em que esteve sob a mira de uma arma.


Já tive uma arma apontada para a minha cabeça para cada beijo que eu dei na vida



Momentos em que alguém gritava com ele, e simultaneamente tinha o poder tirar a vida dele apenas com um gesto. De como ele se sentiu pequeno, com medo. De como ele sentiu raiva por ter sido roubado. Não pelo celular. Nem nela carteira. Mas pelo momento em que outra pessoa o despiu completamente de todo o poder que ele achava que tinha, e o deixou nu sob o chicote da escolha de obedecer ou perder a vida.


Num primeiro momento ao ouvi-lo eu me senti superior. Achei cômico o efeito devastador que estar frente a frente com um algoz armado causou nele. Durou pouco. A realidade caiu na minha cabeça com tanta força que me deu náusea.

Eu tenho 30 anos. Não sou policial. Não sou criminoso. Não servi o exército, muito menos lutei uma guerra. Porém, eu já olhei o interior do cano de uma arma muito mais vezes que meu amigo branco. Eu já tive uma arma apontada para a minha cabeça para cada beijo que eu dei na vida. Já apontaram armas pra mim com mais frequência do que eu procurei emprego. Mais vezes do que eu viajei. Mais vezes do que eu namorei. Eu já tive armas diferentes apontadas para a minha cabeça no mesmo mês, na mesma semana, no mesmo dia.

Já estive tantas vezes sob a mira de uma arma que acabei criando um certo costume. O medo nunca foi embora, todavia eu criei pra mim mesmo uma falsa premissa de que, se eu disser as coisas certas, agir do modo ensaiado e não fazer algo brusco e idiota como espirrar, tossir ou ter um soluço, eu vou viver até o dia seguinte. Falso.

Eu não sei como, mas já conheço os tipos de armas que me apontaram. Sei que geralmente estão engatilhadas e o portador tem quase sempre o dedo no gatilho, o que coloca a calma, equilíbrio e perícia dele dentro da equação.

Já levei uma coronhada. Não chegou a cortar. Só ostentei um galo enorme por alguns dias.

A humilhação também é sempre a mesma. Um desconhecido armado que te encoxa, passa a mão por todo o seu corpo enquanto você prende a respiração com as mãos na parede, ou na cabeça.

Descobri que quando eu estou mais calmo eles param de gritar logo. Descobri também que se ele me matar, é possível que nem vá a julgamento.

Estar sob a mira de uma arma, inutiliza você, te paralisa. Te faz menor que aquele que a segura. Não muda com o tempo. Todas as vezes foram iguais.

Fiquei ouvindo o peso que teve para o meu amigo, e tentando calcular o peso que isso trouxe para mim, o quanto isso molda as minhas ações e visão hoje.

Meu amigo foi assaltado pela primeira vez aos 29 anos. Eu fui assaltado da minha dignidade por um sem número de vezes desde os 11 anos. Poderia escrever um manual sobre.

Me assustou perceber que essa realidade é minha.

Me confortou saber que não somos todos fortes o tempo todo. E que sim, faz diferença na vida. E muita.


*Arape Sango é cantor, compositor e escritor
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