23 maio, 2017

Violência contra cracolândia é ódio de classe


O que resta de humanidade a alguém capaz de ordenar a demolição de um prédio com gente dentro?
Foto: Fora do Eixo

Eu queria que só por um segundo pensássemos no fascismo/criminalização da pobreza/uso desmedido da força/hipocrisia no tratamento dado à região da famigerada cracolândia. Pra você, de classe média ou rico mesmo, eu tenho uma pergunta: como os viciados (ou, como vocês chamam os seus, "dependentes químicos") são tratados no seu entorno? Quantos milhares de reais você já viu ser gastos em clínicas, terapias, viagens ao exterior?

Aos meus próximos (nem tão ricos para pagar clínicas de luxo nem tão pobres para ser largados nas ruas) também pergunto: O que fazemos pelos nossos? Pode deixar, eu mesma respondo: nós buscamos saída! Falamos com o pastor, líder espiritual, padre do bairro, juntamos dinheiro na família pra pagar o ônibus até a clínica, conversamos. Tentamos de tudo para que aquela pessoa tenha outra chance, veja as coisas de maneira distinta e possa se curar.

O que explica que se trate doença com polícia?

O que explica que a única resposta da prefeitura de São Paulo para pessoas doentes (de alma, de corpo, de mente) seja polícia e não médicos; balas de borracha, bombas e cachorros e não remédios e atendimento psicológico? O que aconteceria se invadíssemos uma festa nos Jardins ou no Morumbi e chegássemos chutando as carreirinhas feitas com cartão de crédito gold sem limites, estourando bombas nos sofás milionários e salpicando balas de borracha nos pés dos viciados, fazendo-os dançar?

Dia desses, li um comentário de um moço que comparava as pessoas (sim, são pessoas) a baratas - o que explicaria, na visão dele, a necessidade de "limpeza" da Cracolândia. Caro amigo, "baratas" são pessoas como Dória e Alckmin que decidem que cidade linda é a cidade que empurra pra baixo do tapete suas mazelas. As mazelas que, por sermos tão pobres, não conseguimos esconder atrás de portões ultra-securitizados e em apartamentos de luxo. Elas acabam expostas assim, no meio da rua, pra quem quiser ver. Baratas são Dória e Alckmin que alimentam a miséria humana para usar os escombros de palanque.
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16 maio, 2017

Freixo, Haddad e Quero Prévias são um passo pra quem precisa de um voo


É bom que possamos discutir um programa de esquerda. Mas ainda somos todos crentes - mais ou menos praticantes - da religião do capital


Ontem, saí satisfeito do debate promovido pelo movimento "Quero Prévias" sobre trabalho, na Casa do Povo, em São Paulo. Fiquei feliz de ver Marcelo Freixo e Fernando Haddad debaterem ideias sem as amarras partidárias, sem o compromisso com um processo eleitoral iminente. E feliz também de ver que o Quero Prévias está conseguindo se libertar de reivindicar lugar numa institucionalidade que desmoronou com o golpe de 2016 e se reinventar em uma coisa mais "Quero programa de esquerda". Ainda me incomoda essa primeira pessoa do singular ("Quero", como se coubesse a um singular "querer" pelo plural), mas acho que, com o debate, o coletivo deu um passo importante em direção ao descolamento entre essa marca imperativa e personalista e o objetivo de oxigenar o campo da esquerda com ideias.

Eu estava satisfeito até com o conteúdo do debate. Aí, nesta mesma noite, Angela Davis apareceu pra mim num sonho e me convenceu de que o debate foi uma merda e nós somos as moscas. Ela me disse que nosso horizonte utópico está entrincheirado em um muro conservador capaz de fechar todas as fronteiras do mundo. Como nós podemos começar a discutir um programa - ou seja, ainda sem o compromisso com a sua realização - se não nos permitirmos sonhar? Este é o único momento na longa estrada do processo eleitoral em que temos direito a sonhos. Mas fazemos como jornalista pejotista da grande imprensa: nos autocensuramos antes que o sistema o faça.
O Freixo falou de como o sistema carcerário é o depósito de uma parcela da população que fica mais e mais inempregável. Sem dizer, ele disse que o aumento da precarização deve ampliar a criminalização da pobreza e, consequentemente, a população carcerária. Ele esqueceu de dizer que o capital já tem solução pra isso: legalizar a escravidão. Um bom campo de testes tem sido os presídios privatizados da Califórnia.

Lá, uma parte expressiva dos detentos cumpre pena por reincidência em tentativa de imigração ilegal. Ou seja, pelo crime de tentar procurar uma vida melhor noutro lugar depois que seu lugar de origem foi destruído pelo Nafta (acordo de livre comércio da América do Norte); ou pelas ditaduras financiadas com capital e poderio yankees; ou pela política neoimperialista de boicote às democracias progressistas do século XXI; enfim, por qualquer uma das consequências nefastas de ter como vizinho o maior império da história da humanidade.

Sem conhecimento do inglês e muito menos do sistema jurídico estadunidense, essas pessoas são obrigadas a barganhar em tribunais fast-food, em que dezenas são julgados ao mesmo tempo. As opções na mesa são: 1) Enfrentar todo o peso da lei - e arriscar décadas de cárcere - ou; 2) aceitar cumprir uma pena menor antes da deportação e poupar o Estado americano de arcar com os custos do processo.
Sistema carcerário tende a legalizar escravidão

Uma vez no sistema carcerário, que gera renda astronômica a empresas como Geo Group e CCA (Corrections Corporation of America), o preso pode optar por fazer exatamente aquilo que ele veio fazer nos Estados Unidos: trabalhar. Com a diferença que, preso, ele trabalha por uma fração do salário mínimo, com um único direito "trabalhista": uma hora de banho de sol por dia. O que é isso senão o restabelecimento do sistema escravocrata, com a sofisticação discursiva que só o neoliberalismo pode te oferecer?

Mas o que incomodou a Angela em mim não foi o fato de Freixo não ter entrado nos detalhes de como o boom carcerário tem reciclado a inempregabilidade crônica em fonte de renda. Foi o fato de que ele parou a discussão antes do horizonte utópico que, obviamente, é a abolição do sistema prisional - e lógico, da polícia. Pra que serve cadeia e polícia? No caso da estrutura social da contemporaneidade capitalista, são ferramentas de controle e gestão da não-distribuição de renda. Em termos de psicologia social, são resquícios da escravidão, cujo efeito mental - e físico - no corpo da sociedade é assustar os que correm o risco de voltar pro pelourinho e tranquilizar aqueles que vão segurar o chicote. Então, por que nem o Freixo, num ambiente favorável e descompromissado como aquele, é capaz de dizer com todas as letras que nosso objetivo na área de segurança pública é a extinção da cadeia e da polícia?

Teve uma hora lá que alguém na roda (não tinha mesa, o que foi muito bom) debochou da renda básica de cidadania - Suplicy que o perdoe. Não porque é um dispositivo social-democrata meio conservador, que visa salvar o capital da sua implosão por meio de uma distribuição apaziguadora da renda que geramos coletivamente. Mas por uma chave moralista ("vamos pagar pro cara ficar em casa jogando videogame").

Sabe que uma organização anarco-feminista chamada FED (o banco central dos EUA) fez uma pesquisa interessante (citada aqui por Daniel Pink) que mostra que as pessoas são mais eficientes em trabalhos intelectuais quando sua principal motivação não é externa. Ou seja, não é o dinheiro que faz com que exploremos o máximo de nossas capacidades humanas. E, em certos níveis de complexidade intelectual das nossas tarefas, o dinheiro chega a ser contraproducente. Se o trampo não é o divisor de águas entre ter ou não ter o que comer, o trabalho sai muito melhor. E daí que meia dúzia fique em casa jogando videogame, se você liberar o pintor que tá varrendo rua para pintar, o filósofo que tá pedindo esmola para pensar, o escritor que tá trampando de fogueteiro para escrever?

"Ah, mas da onde vai vir o dinheiro para isso?" Bom, essa já é uma pergunta conservadora se estamos falando de utopia, mas vá lá: o setor privado não gera riqueza nenhuma sem o apoio do Estado. Seja por meio de incentivos fiscais, seja por meio da inovação que deriva dos institutos públicos de pesquisa ou pela apropriação direta da inteligência coletiva (como no caso de Google, Facebook etc). Por que essa gente que produz com nosso dinheiro, nossa inteligência e nossa força de trabalho não nos devolve nada? Essa seria uma resposta conservadora, ainda dentro das regras do capital.
O que dá valor ao dinheiro é a crença religiosa em seu valor

A resposta sonhadora seria: foda-se da onde vem o dinheiro. Da taxação de grandes fortunas ou até da invenção de um dinheiro não-especulativo de mentirinha. Afinal, o que a gente chama hoje de dinheiro não tem lastro desde 1973 mesmo. A única coisa que dá valor ao dinheiro é a crença religiosa de que ele tem valor. Vamos começar a implodir as bases ideológicas do dinheiro? Se não diretamente, pelo menos em discurso.

Isso me leva a uma outra parada. Quando o Haddad fala de internacionalismo, ele fala de integração dos mercados para o crescimento conjunto da América Latina. Certo. E o povo? Fazer crescer o mercado significa ampliar a atividade especulativa - uma atividade extrativista, altamente poluidora, que arranca o potencial de desenvolvimento humano das populações e não devolve nada -, ampliar o poder das elites estabelecidas e facilitar as condições de exploração do trabalhador. A não ser que você não esteja falando de competir no mercado Internacional - o que definitivamente não era o caso. Se sua ideia é entrar na briga para vencer dentro das regras do capital, integrar mercado significa socializar a exploração em nome do crescimento econômico.

Crescimento econômico... "Eu não vou me aventurar na economia com tantos economistas presentes", disse Freixo. Que traço imenso de ideologia neoliberal, achar que a economia pertence aos técnicos, a pessoas de saber supremo e inatingível. Economia é o primeiro conhecimento de todo mundo, que tá em todas as casas, de quem sabe ler e de quem não sabe. O grande trunfo do liberalismo foi convencer a maioria de nós de que esse é um assunto intocável, uma ciência exata complexa, filhote da matemática aplicada. Não é nem ciência nem exata. É uma invenção humana como qualquer outra, com enormes doses de superstição, misticismo, adivinhação e ideologia.

Por que a gente, como esquerda, precisa defender crescimento econômico, se a medição do crescimento é um índice conservador como o PIB, que aumenta quando acontecem catástrofes humanitárias? A gente devia era estar pensando uma nova maneira de medir riqueza, que levasse em conta a felicidade humana, o grau de realização coletiva, o grau de preservação da natureza. E nada disso se pode medir em números. Ou seja, os modelos matemáticos dos economistas não têm como medir riqueza de fato! Não consigo ver dinheiro como riqueza. As pessoas mais ricas que cruzaram meu caminho, as pessoas que mais me ensinaram nunca tiveram porra nenhuma. Vai dizer que minha vó não foi nada por que não teve nada? Foi a preta velha mais guerreira, mais sábia que conheci. E no atestado de óbito dela, tá lá: "não deixa bem algum". É um atestado de óbito ideológico de direita.
Falar em redução da desigualdade é naturalizar a desigualdade

E aí, eu penso o seguinte: o que aconteceu com a distribuição no discurso da esquerda socialista? Distribuição mesmo, destruição das desigualdades. O Freixo até flertou com isso, mas ainda fala em redução das desigualdades. Eu acho que a gente tem que arrumar um outro vocabulário. Quando falamos em "redução das desigualdades", naturalizamos a desigualdade. O pressuposto dessa expressão é que é normal que haja desigualdade, mas não tanta.

Enfim, esse diabinho Davis aí atinou pra uma ideia simples: a gente perdeu a coragem de exigir o impossível, somos todos conservadores de alguma coisa, todos crentes - mais ou menos praticantes - da religião do capital. A gente pede o que acha que o sistema pode dar. Se o nosso sonho é feito de muros, quem vai construir pontes?
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