24 outubro, 2016

"Segurança virou instrumento de propaganda", diz Marcelo Freixo

Marcelo Freixo concede entrevista na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2015. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O número de homicídios no estado do Rio de Janeiro cresceu 16% entre os anos de 2012 e 2013. Embora alarmante, o dado divulgado pelo ISP (Instituto de Segurança Pública) nesta terça-feira (18 de março de 2014) é apenas mais um entre vários indícios de uma crise generalizada no sistema carioca de segurança. São tantos e tão sintomáticos os casos extremos de violência que é até difícil elencá-los. No início de fevereiro, o Aterro do Flamengo viu uma reconstituição grotesca dos pelourinhos de outrora: um negro menor de idade foi subitamente julgado como ladrão, amarrado nu a um poste e espancado por justiceiros.

Antes disso, em dezembro, um morador de rua que carregava uma garrafa de água sanitária e outra de desinfetante foi preso e transformado em bode expiatório das manifestações da metade do ano passado. É até agora o único condenado pelos supostos excessos dos movimentos. Detalhe observado pelo deputado estadual e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Marcelo Freixo (PSOL): Rafael Vieira "sequer sabia quem era o Governador do Rio de Janeiro".

No último sábado, quatrocentos policiais - cem deles do Batalhão de Operações Especiais, o BOPE - foram deslocados para áreas sensíveis de favelas "pacificadas" na Zona Norte do Rio de Janeiro. O reforço é uma resposta estatal aos mais recentes ataques às unidades de polícia pacificadora. Desde a instalação das UPPs, em 2008, 11 policiais que integravam essas unidades foram assassinados. Ao falar com a imprensa durante a reocupação de favelas no Complexo do Alemão e na Penha, o coronel Frederico Caldas abandonou a lógica da polícia comunitária e declarou: "a resposta será extremamente dura".

Miopia e daltonismo
O problema é que as respostas "extremamente duras" da Polícia Militar são seletivamente míopes. Haja vista o registro inicial do assassinato de Cláudia Silva Ferreira, baleada por PMs na zona norte do Rio e arrastada por uma viatura policial por 350 metros no último fim de semana. No primeiro relatório sobre a morte, os militares fizeram um "auto de resistência", segundo o qual a vítima teria reagido violentamente a ordem policial. Cláudia era servente e não trazia nada além de um copo de café nas mãos. Curiosamente, a grande maioria das vítimas letais da violência policial é registrada sob os tais autos de resistência. Se eles são todos verdadeiros, só em 2007, 1330 pessoas reagiram violentamente à polícia no Estado do Rio, informa relatório do ISP.

Embora sejam míopes, as respostas policiais não são daltônicas, dada a quantidade de negros enquadrados e presos de forma arbitrária na cidade. Até o ator da Globo Vinicius Romão foi vítima da prisão provisória, uma medida restritiva de liberdade que, teoricamente, só deveria ser aplicada quando o acusado oferece perigo grave. Ou melhor, quando ameaça o princípio de "garantia da ordem pública" - um entre muitos resquícios da Ditadura Militar em nosso código penal - que, na prática, outorga aos magistrados uma premissa subjetiva de execução da pena. Romão, que é negro, passou 16 dias atrás das grades. Mas a libertação rápida não é a regra para a maior parte dos presos provisórios, que compõem quase 40% da população carcerária carioca.

Apesar do anacronismo do princípio, em 2011, os juízes optaram pela prisão provisória em 79% dos casos de detenção em flagrante, independentemente da periculosidade dos detidos ou mesmo da gravidade dos crimes. Os dados são do estudo "Usos e abusos da prisão provisória no Rio de Janeiro", realizado pela Associação pela Reforma Prisional (ARP), em parceria com o CESEC, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes.
É neste cenário caótico que trabalha Marcelo Freixo. Uma tarefa árdua, já que acumulam-se sobre a mesa do deputado todos estes casos que, em conjunto, mostram o quão doente está a Segurança Pública no Estado. Leia a seguir entrevista com Freixo.

Gabriel Rocha GasparDeputado, aqui na França, desde que foram instaladas, as UPPs foram frequentemente mostradas na imprensa como uma solução milagrosa para a segurança pública no Rio. Seis anos depois da primeira UPP, este tipo de unidade já foi alvo de vários ataques. As UPPs, do jeito que elas foram pensadas e instaladas, constituem um sistema intrinsecamente defeituoso?
 Marcelo Freixo - Olha, primeiro que não existe uma solução mágica para a segurança pública nem do Rio de Janeiro nem de nenhum outro lugar. É falsa a polêmica de quem é favorável ou contra as UPPs como se o debate das UPPs resumisse todos os debates de segurança pública no Rio de Janeiro. Nós não temos uma nova polícia, não temos um outro treinamento, não temos uma vigilância sobre a polícia, não temos ouvidorias, não temos corregedorias eficientes, os salários são absolutamente aviltantes, não há um treinamento novo, adequado e preparado para uma outra lógica de segurança pública. Então, nós temos problemas estruturais que não foram tocados, sequer tocados. Então, evidentemente, não há solução mágica para a segurança pública.

O problema é que a segurança virou já há bastante tempo, não só neste governo, um instrumento de propaganda. Então, nas áreas em que você consegue fazer propaganda, ótimo. As áreas em que você não consegue fazer propaganda, você esquece e torna invisíveis. É o caso da área do 9° Batalhão (de Polícia Militar, em Rocha Miranda), em que tivemos um episódio neste domingo dos mais absurdos, onde uma mulher foi arrastada por um carro da polícia pendurada pela roupa na caçamba. Não sei nem se vocês já tiveram acesso a essa imagem, mas é uma imagem absurda de uma mulher morta pela polícia, colocada na caçamba. Ela cai, fica presa pela roupa e é arrastada pelas ruas na área do 9° Batalhão. É uma área que está muito longe de qualquer propaganda de segurança pública. Uma área onde nós tivemos 18 autos de resistência, 18 pessoas mortas pela polícia no ano passado. Isso dá mais de uma pessoa por mês. (Uma área) onde os roubos aumentaram de 6,9 mil para 8.146. O homicídio saiu de 143 para 173, só nessa área. Uma área de disputa de milícia e tráfico...

O que se espera? Que todo o Rio de Janeiro tenha uma UPP? Que cada favela do Rio de Janeiro, das mais de mil, tenha uma UPP? Um Estado Militar? Isso não é factível. Então, o debate da Segurança Pública é muito mais profundo do que o debate das UPPs. O debate das UPPs em si merece todo um acompanhamento, todo um conjunto de críticas. Não pode ser visto como algo favorável ou contra, (como) se isso resumisse todo o debate.

No fim do ano passado, você entrevistou o Rafael Braga Vieira, primeiro condenado pelas manifestações da metade do ano...
Primeiro e único.

E único ainda. E tenho visto também sua militância com relação aos casos de racismo no Judiciário, inclusive dentro da Comissão dos Direitos Humanos que você preside. O racismo é exceção ou modus operandi no Judiciário carioca? Como isso se relaciona com a questão da segurança pública de modo geral?
O Brasil passou muitos anos, alguns séculos, com a escravidão. Nós fomos escravocratas (durante) toda a colônia, todo o império e não resolvemos a escravidão na República. Então, as nossas instituições estão absolutamente carregadas por um olhar racista. Isso não só o Judiciário, mas o Executivo, o Legislativo, o Ministério Público, as nossas polícias. O racismo não aparece no Brasil apenas numa declaração racista ou num preconceito ou num estádio de futebol. O racismo está inserido no dia-a-dia das instituições.

Basta a gente olhar para o sistema prisional do Brasil que a gente constata o que significa. Basta você ver a forma de abordagem nas ruas, a lógica da segurança pública, que continua sendo a busca do inimigo, do elemento suspeito. A questão social no Brasil é muito marcante. O Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. Ela se mistura de uma maneira muito contundente com a questão racial. A gente não consegue separar, na história do Brasil, a questão social da questão racial.
Nós tivemos agora um episódio muito grave de um rapaz confundido com um assaltante, que foi detido. O azar é que ele era ator, da Rede Globo inclusive, tinha feito uma novela na Rede Globo, e a única razão de ele não ter sido investigado - porque ele foi reconhecido pela pessoa que assaltou - é porque ele era negro. E isso aconteceu na Zona Norte do Rio de Janeiro. Então, evidentemente a nossa Justiça Criminal, assim como diversos outros poderes, tem - e muito - no seu dia-a-dia, na sua estrutura, uma prática racista.

Enquanto o Rafael Vieira foi condenado...
O Rafael continua preso, estivemos com ele ontem (17/03), por coincidência. Ontem, nós levamos a mãe do Rafael para visitá-lo. Foi a primeira vez que a mãe visitou, porque é uma pessoa muito pobre, que não tem sequer o dinheiro da passagem para poder ir ao presídio. Ontem, nós conseguimos a viabilidade de ela ir com alguma frequência lá, a gente conseguiu a transferência do Rafael para um outro presídio, onde ele vai ter a chance de fazer algum curso profissionalizante, que é o que ele quer.
Enfim, a gente acompanha o caso dele muito de perto, mas é um absurdo porque o Rafael evidentemente não tem qualquer possibilidade de ser um manifestante, não tem nenhuma chance de ele ter cometido o crime pelo qual ele foi acusado, julgado e condenado. Enfim, as provas são absolutamente frágeis, inclusive contrariando a própria perícia, que diz que o material encontrado com ele não era um material inflamável. Mas é isso: é o único manifestante de todas as manifestações que ocorreram no Brasil condenado. Morador de rua, que sequer sabia quem era o governador do Rio de Janeiro.

E ele foi condenado a cinco anos de cadeia enquanto que os PMs que arrastaram a Claudia Ferreira da Silva foram enquadrados no artigo 324 do Código Penal Militar, definido assim: "deixar, no exercício da função, de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar". Agora, não entendo porque não homicídio triplamente qualificado e formação de quadrilha. Desmilitarizar a polícia não ajudaria a acabar com este tipo de distorção?
Eu acho que isso é fundamental, não só por isso. Nossa polícia é completamente esquizofrênica, não existe esse modelo de polícia em qualquer lugar do mundo. É uma herança da Ditadura Militar, que a gente precisa superar. É ineficiente e é violenta. A gente não tem qualquer ganho. Não é uma polícia preparada para conviver com a democracia porque sequer ela convive internamente com a democracia. Faz dos próprios policiais e da sociedade, vítimas de um modelo de segurança, que não se justifica em nenhuma, nenhuma hipótese. Hoje, nós temos uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) tramitando, a PEC 51, que foi apresentada pelo Senador Lindbergh (Farias, PT-RJ) e idealizada pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares. Sem dúvida nenhuma, é uma possibilidade de avanço, um ponto de partida para um debate mais concreto, difícil, difícil de ser ampliado no Brasil porque a resistência é muito grande. Mas sem dúvida, uma das maiores necessidades que nós temos.

Mas é um debate que começou a aparecer com mais frequência desde as manifestações, não, deputado?
Sem dúvida alguma. Não era uma pauta inicial das manifestações. Eu trabalho com esse tema há muitos anos e sei que esse tema sempre reuniu um número muito pequeno de pessoas interessadas. Ele diz respeito à própria parte da segurança pública. Só que a própria violência policial nas manifestações... As manifestações permitiram que a sociedade conhecesse uma polícia violenta que nós sempre tivemos. Só que ela sempre foi direcionada para a periferia, para a favela e para um determinado setor da sociedade. As manifestações fizeram com que essa violência policial fosse generalizada para o conjunto da sociedade. Então, o debate da desmilitarização da polícia ganha as pautas, aparece nas manifestações a partir da própria violência policial nas manifestações. Se você olhar as manifestações anteriores ou iniciais, elas não tinham essa pauta. Esse cartaz não aparecia. E depois se transforma, talvez, na principal pauta, junto com o questionamento da Copa do Mundo.

Você foi vítima de um processo de difamação irresponsável e até obtuso iniciado pelo jornal O Globo. Por que eles querem tanto te tirar de cena?
O Globo faz parte deste projeto de cidade-negócio. O Globo é sócio. A empresa Globo é sócia desse projeto de cidade-business, cidade-negócio, cidade-commodity, como eles gostam de chamar. Olha para a cidade e vê cifrão, não olha para a cidade e vê pessoas. Então, eles estão na disputa da cidade e tentam eliminar aqueles que eles elegem inimigos dessa disputa, desse projeto de cidade. Eu realmente não estou do lado deles. O problema é que a gente espera sempre que a luta política seja feita com o mínimo de integridade e honestidade. Não foi o caso deles neste momento.

Matéria publicada originalmente pela Radio France Internationale, a 19 de março de 2014
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