Marcelo Freixo concede entrevista na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 2015. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
O número de homicídios
no estado do Rio de Janeiro cresceu 16% entre os anos de 2012 e 2013. Embora
alarmante, o dado divulgado pelo ISP (Instituto de Segurança Pública) nesta terça-feira (18 de março de 2014) é apenas mais um entre
vários indícios de uma crise generalizada no sistema carioca de segurança. São
tantos e tão sintomáticos os casos extremos de violência que é até difícil
elencá-los. No início de fevereiro, o Aterro do Flamengo viu uma
reconstituição grotesca dos pelourinhos de outrora: um negro menor de idade foi
subitamente julgado como ladrão, amarrado nu a um poste e espancado por
justiceiros.
Antes disso, em
dezembro, um morador de rua que carregava uma garrafa de água sanitária e outra
de desinfetante foi preso e transformado em bode expiatório das manifestações
da metade do ano passado. É até agora o único condenado pelos supostos excessos
dos movimentos. Detalhe observado pelo deputado estadual e presidente da
Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa
do Rio (Alerj), Marcelo Freixo (PSOL): Rafael Vieira "sequer sabia
quem era o Governador do Rio de Janeiro".
No último sábado,
quatrocentos policiais - cem deles do Batalhão de Operações Especiais, o BOPE -
foram deslocados para áreas sensíveis de favelas "pacificadas" na
Zona Norte do Rio de Janeiro. O reforço é uma resposta estatal aos mais recentes
ataques às unidades de polícia pacificadora. Desde a instalação das UPPs, em
2008, 11 policiais que integravam essas unidades foram assassinados. Ao falar
com a imprensa durante a reocupação de favelas no Complexo do Alemão e na
Penha, o coronel Frederico Caldas abandonou a lógica da polícia comunitária e
declarou: "a resposta será extremamente dura".
Miopia e daltonismo
O problema é que as
respostas "extremamente duras" da Polícia Militar são seletivamente
míopes. Haja vista o registro inicial do assassinato de Cláudia Silva Ferreira,
baleada por PMs na zona norte do Rio e arrastada por uma viatura policial por
350 metros no último fim de semana. No primeiro relatório sobre a morte, os
militares fizeram um "auto de resistência", segundo o qual a vítima
teria reagido violentamente a ordem policial. Cláudia era servente e não trazia
nada além de um copo de café nas mãos. Curiosamente, a grande maioria das
vítimas letais da violência policial é registrada sob os tais autos de
resistência. Se eles são todos verdadeiros, só em 2007, 1330 pessoas reagiram
violentamente à polícia no Estado do Rio, informa relatório do ISP.
Embora sejam míopes,
as respostas policiais não são daltônicas, dada a quantidade de negros
enquadrados e presos de forma arbitrária na cidade. Até o ator da Globo
Vinicius Romão foi vítima da prisão provisória, uma medida restritiva de
liberdade que, teoricamente, só deveria ser aplicada quando o acusado oferece
perigo grave. Ou melhor, quando ameaça o princípio de "garantia da ordem
pública" - um entre muitos resquícios da Ditadura Militar em nosso código
penal - que, na prática, outorga aos magistrados uma premissa subjetiva de
execução da pena. Romão, que é negro, passou 16 dias atrás das grades. Mas a
libertação rápida não é a regra para a maior parte dos presos provisórios, que
compõem quase 40% da população carcerária carioca.
Apesar do anacronismo
do princípio, em 2011, os juízes optaram pela prisão provisória em 79% dos
casos de detenção em flagrante, independentemente da periculosidade dos detidos
ou mesmo da gravidade dos crimes. Os dados são do estudo "Usos e abusos da
prisão provisória no Rio de Janeiro", realizado pela Associação pela
Reforma Prisional (ARP), em parceria com o CESEC, o Centro
de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes.
É neste cenário
caótico que trabalha Marcelo Freixo. Uma tarefa árdua, já que acumulam-se sobre
a mesa do deputado todos estes casos que, em conjunto, mostram o quão doente
está a Segurança Pública no Estado. Leia a seguir entrevista com Freixo.
Gabriel Rocha Gaspar - Deputado, aqui na França, desde
que foram instaladas, as UPPs foram frequentemente mostradas na imprensa como
uma solução milagrosa para a segurança pública no Rio. Seis anos depois da
primeira UPP, este tipo de unidade já foi alvo de vários ataques. As UPPs, do
jeito que elas foram pensadas e instaladas, constituem um sistema
intrinsecamente defeituoso?
Marcelo Freixo - Olha, primeiro que não existe uma
solução mágica para a segurança pública nem do Rio de Janeiro nem de nenhum
outro lugar. É falsa a polêmica de quem é favorável ou contra as UPPs como se o
debate das UPPs resumisse todos os debates de segurança pública no Rio de
Janeiro. Nós não temos uma nova polícia, não temos um outro treinamento, não
temos uma vigilância sobre a polícia, não temos ouvidorias, não temos
corregedorias eficientes, os salários são absolutamente aviltantes, não há um
treinamento novo, adequado e preparado para uma outra lógica de segurança
pública. Então, nós temos problemas estruturais que não foram tocados, sequer
tocados. Então, evidentemente, não há solução mágica para a segurança pública.
O problema é que a
segurança virou já há bastante tempo, não só neste governo, um instrumento de
propaganda. Então, nas áreas em que você consegue fazer propaganda, ótimo. As
áreas em que você não consegue fazer propaganda, você esquece e torna
invisíveis. É o caso da área do 9° Batalhão (de Polícia Militar, em Rocha
Miranda), em que tivemos um episódio neste domingo dos mais absurdos, onde uma
mulher foi arrastada por um carro da polícia pendurada pela roupa na caçamba.
Não sei nem se vocês já tiveram acesso a essa imagem, mas é uma imagem absurda
de uma mulher morta pela polícia, colocada na caçamba. Ela cai, fica presa pela
roupa e é arrastada pelas ruas na área do 9° Batalhão. É uma área que está
muito longe de qualquer propaganda de segurança pública. Uma área onde nós
tivemos 18 autos de resistência, 18 pessoas mortas pela polícia no ano passado.
Isso dá mais de uma pessoa por mês. (Uma área) onde os roubos aumentaram de 6,9
mil para 8.146. O homicídio saiu de 143 para 173, só nessa área. Uma área de
disputa de milícia e tráfico...
O que se espera? Que
todo o Rio de Janeiro tenha uma UPP? Que cada favela do Rio de Janeiro, das
mais de mil, tenha uma UPP? Um Estado Militar? Isso não é factível. Então, o
debate da Segurança Pública é muito mais profundo do que o debate das UPPs. O
debate das UPPs em si merece todo um acompanhamento, todo um conjunto de
críticas. Não pode ser visto como algo favorável ou contra, (como) se isso
resumisse todo o debate.
No fim do ano passado, você
entrevistou o Rafael Braga Vieira, primeiro condenado pelas manifestações da
metade do ano...
Primeiro e único.
E único ainda. E tenho visto
também sua militância com relação aos casos de racismo no Judiciário, inclusive
dentro da Comissão dos Direitos Humanos que você preside. O racismo é exceção
ou modus operandi no Judiciário carioca? Como isso se relaciona com a questão
da segurança pública de modo geral?
O Brasil passou muitos anos, alguns
séculos, com a escravidão. Nós fomos escravocratas (durante) toda a colônia,
todo o império e não resolvemos a escravidão na República. Então, as nossas
instituições estão absolutamente carregadas por um olhar racista. Isso não só o
Judiciário, mas o Executivo, o Legislativo, o Ministério Público, as nossas
polícias. O racismo não aparece no Brasil apenas numa declaração racista ou num
preconceito ou num estádio de futebol. O racismo está inserido no dia-a-dia das
instituições.
Basta a gente olhar
para o sistema prisional do Brasil que a gente constata o que significa. Basta
você ver a forma de abordagem nas ruas, a lógica da segurança pública, que
continua sendo a busca do inimigo, do elemento suspeito. A questão social no
Brasil é muito marcante. O Brasil ainda é um dos países mais desiguais do
mundo. Ela se mistura de uma maneira muito contundente com a questão racial. A
gente não consegue separar, na história do Brasil, a questão social da questão
racial.
Nós tivemos agora um
episódio muito grave de um rapaz confundido com um assaltante, que foi detido.
O azar é que ele era ator, da Rede Globo inclusive, tinha feito uma novela na
Rede Globo, e a única razão de ele não ter sido investigado - porque ele foi
reconhecido pela pessoa que assaltou - é porque ele era negro. E isso aconteceu
na Zona Norte do Rio de Janeiro. Então, evidentemente a nossa Justiça Criminal,
assim como diversos outros poderes, tem - e muito - no seu dia-a-dia, na sua
estrutura, uma prática racista.
Enquanto o Rafael Vieira foi
condenado...
O Rafael continua preso, estivemos com
ele ontem (17/03), por coincidência. Ontem, nós levamos a mãe do Rafael para
visitá-lo. Foi a primeira vez que a mãe visitou, porque é uma pessoa muito
pobre, que não tem sequer o dinheiro da passagem para poder ir ao presídio.
Ontem, nós conseguimos a viabilidade de ela ir com alguma frequência lá, a
gente conseguiu a transferência do Rafael para um outro presídio, onde ele vai
ter a chance de fazer algum curso profissionalizante, que é o que ele quer.
Enfim, a gente
acompanha o caso dele muito de perto, mas é um absurdo porque o Rafael
evidentemente não tem qualquer possibilidade de ser um manifestante, não tem
nenhuma chance de ele ter cometido o crime pelo qual ele foi acusado, julgado e
condenado. Enfim, as provas são absolutamente frágeis, inclusive contrariando a
própria perícia, que diz que o material encontrado com ele não era um material
inflamável. Mas é isso: é o único manifestante de todas as manifestações que
ocorreram no Brasil condenado. Morador de rua, que sequer sabia quem era o
governador do Rio de Janeiro.
E ele foi condenado a cinco anos de
cadeia enquanto que os PMs que arrastaram a Claudia Ferreira da Silva foram
enquadrados no artigo 324 do Código Penal Militar, definido assim:
"deixar, no exercício da função, de observar lei, regulamento ou
instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração
militar". Agora, não entendo porque não homicídio triplamente qualificado
e formação de quadrilha. Desmilitarizar a polícia não ajudaria a acabar com
este tipo de distorção?
Eu acho que isso é fundamental, não só
por isso. Nossa polícia é completamente esquizofrênica, não existe esse modelo
de polícia em qualquer lugar do mundo. É uma herança da Ditadura Militar, que a
gente precisa superar. É ineficiente e é violenta. A gente não tem qualquer
ganho. Não é uma polícia preparada para conviver com a democracia porque sequer
ela convive internamente com a democracia. Faz dos próprios policiais e da
sociedade, vítimas de um modelo de segurança, que não se justifica em nenhuma,
nenhuma hipótese. Hoje, nós temos uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) tramitando,
a PEC 51, que foi apresentada pelo Senador Lindbergh (Farias, PT-RJ) e
idealizada pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares. Sem dúvida nenhuma, é uma
possibilidade de avanço, um ponto de partida para um debate mais concreto,
difícil, difícil de ser ampliado no Brasil porque a resistência é muito grande.
Mas sem dúvida, uma das maiores necessidades que nós temos.
Mas é um
debate que começou a aparecer com mais frequência desde as manifestações, não,
deputado?
Sem dúvida alguma. Não era uma pauta
inicial das manifestações. Eu trabalho com esse tema há muitos anos e sei que
esse tema sempre reuniu um número muito pequeno de pessoas interessadas. Ele
diz respeito à própria parte da segurança pública. Só que a própria violência
policial nas manifestações... As manifestações permitiram que a sociedade
conhecesse uma polícia violenta que nós sempre tivemos. Só que ela sempre foi
direcionada para a periferia, para a favela e para um determinado setor da
sociedade. As manifestações fizeram com que essa violência policial fosse
generalizada para o conjunto da sociedade. Então, o debate da desmilitarização
da polícia ganha as pautas, aparece nas manifestações a partir da própria
violência policial nas manifestações. Se você olhar as manifestações anteriores
ou iniciais, elas não tinham essa pauta. Esse cartaz não aparecia. E depois se
transforma, talvez, na principal pauta, junto com o questionamento da Copa do
Mundo.
Você foi
vítima de um processo de difamação irresponsável e até obtuso iniciado pelo
jornal O Globo. Por que eles querem tanto te tirar de cena?
O Globo faz parte deste projeto de
cidade-negócio. O Globo é sócio. A empresa Globo é sócia desse projeto de
cidade-business, cidade-negócio, cidade-commodity, como eles gostam de chamar.
Olha para a cidade e vê cifrão, não olha para a cidade e vê pessoas. Então,
eles estão na disputa da cidade e tentam eliminar aqueles que eles elegem
inimigos dessa disputa, desse projeto de cidade. Eu realmente não estou do lado
deles. O problema é que a gente espera sempre que a luta política seja feita
com o mínimo de integridade e honestidade. Não foi o caso deles neste momento.
Matéria publicada originalmente pela Radio France Internationale, a 19 de março de 2014
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