20 outubro, 2016

A História absolverá Hugo Chávez

 Foto: Hugo Chávez em Congresso do Partido Socialista Unido da Venezuela, em 30 de maio de 2008 (Crédito: Bernardo Londoy/Flickr)

Caudilho, populista, déspota, inimigo dos direitos humanos, líder autoritário, algoz da democracia. Tudo isso foi dito de Hugo Chávez, o presidente mais popular da história da Venezuela. Debaixo da cortina de adjetivos tão amplamente empregados pela mídia corporativa, há a história de alguém que, com todas as suas contradições, transformou a população mais carente em protagonista da vida política venezuelana, distribuiu o lucro do petróleo e implementou programas sociais de uma ousadia sem precedentes.

Mas, ao contrário do que se diz, Chávez não chegou ao poder em 1998 com o pé na porta - como havia tentado fazer com um golpe, em 1992. Pelo contrário, ele assumiu a presidência com uma plataforma até conservadora em termos econômicos – em seu primeiro governo, ele indicou uma antiga ministra de Rafael Caldera para a pasta da Fazenda, colocou um empresário à frente da estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA) e chegou até a visitar Wall Street para convencer os grandes investidores da segurança de seu sistema financeiro. Frente à recusa ao diálogo, Chávez se viu obrigado a radicalizar a revolução bolivariana.

A gota d'água foi em 2002, quando a direita venezuelana, amparada pela mídia oligárquica e sob o olhar complacente do Departamento de Estado sob Bush, deu um golpe de estado que o tirou do poder por pouco menos de 48 horas. Foi a partir dali que ele aprofundou o discurso contra o imperialismo norte-americano, fez discutíveis alianças econômicas com países como Síria e Irã e lançou um esforço monumental para exportar seu projeto político por meio da integração latino-americana.

Na esteira de seu bolivarianismo anti-imperialista, o comandante erradicou o analfabetismo, tirou 58% da população da miséria absoluta e garantiu a estas pessoas acesso a direitos humanos básicos, como a saúde e a moradia, até então negligenciados. E, montado no petróleo – os 296,5 bilhões de barris comprovados em 2011 conferem à Venezuela a maior reserva do planeta –, Chávez internacionalizou sua batalha pelo que chamava de "Socialismo do século XXI", incluindo países pobres no bilionário mercado petrolífero, a preços quase simbólicos.

União petro-solidária
Por exemplo, na Petrocaribe, pequenas ilhas como Jamaica, Barbados, Antigua e Barbuda, Granada, Bahamas e países como Nicarágua, Suriname e Guatemala, que jamais conseguiriam suprir suas necessidades de petróleo no mercado tradicional, compram o combustível fóssil venezuelano em financiamentos de 25 anos, sob juros de 1%. Estabelecida em 2005, a Petrocaribe expandiu um programa que a Venezuela já mantinha com Cuba, em que a venda do combustível é condicionada a uma permuta com serviços básicos. Venezuela envia petróleo, Cuba envia médicos. 

Dentro da ALBA, a organização estabeleceu um fundo para financiar programas sociais e econômicos com recursos de instrumentos financeiros e não financeiros, como contribuições acordadas, derivadas da parte financiada do petróleo; e as economias inerentes ao comércio direto (sem intermediários e a especulação decorrente).

No entanto, este tipo de iniciativa ricocheteou internamente e causou fissuras não só na política, mas também na economia. A principal delas foi que, com a aplicação da maior parte da receita da PDVSA em programas sociais, além de repasses da ordem de 40% da empresa para o Estado, o país acabou investindo pouco em tecnologia, produção e exploração. O resultado foi que a produção caiu, durante os principais anos das "missiones sociales" do presidente. O trunfo na manga do governo era que as reservas eram tão grandes que a comercialização e exportação do petróleo venezuelano sempre figuraram entre as maiores do mundo.

Para Argentina e Uruguai, o petróleo escorre de Caracas em troca de tratores, maquinário, softwares e "vacas prenhas que produzem muito leite", como definiu o próprio Chávez, durante 17ª Cúpula Ibero-Americana, em 2007, no Chile. Na ocasião, ele sugeriu que o então presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, também vendesse o combustível a preços preferenciais para os países que não podem pagar US$ 100/barril. Ele brincou com o brasileiro, chamando-o de "magnata do petróleo", por causa das recém-descobertas reservas do pré-sal.

Isolado e referendado
Durante anos, Chávez não teve com quem fazer troça. Quando assumiu seu primeiro mandato, em 1999, os líderes da região estavam convencidos que o progresso dependia do alinhamento com os interesses econômicos norte-americanos e com o cumprimento protocolar das recomendações do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a região. Na época, estes laços se estreitavam proporcionalmente às discussões sobre a criação da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca.

Distante destas negociações, Hugo Chávez esforçava-se por combinar internamente seus programas sociais com uma propaganda de austeridade econômica e política. Durante a campanha, prometeu não estatizar empresas, não expropriar meios de comunicação nem estender sua permanência na presidência - claro que depois ele fez tudo isso. Foi neste primeiro mandato que Chávez inaugurou uma prática que serviria, durante toda sua carreira à frente do Executivo, como termômetro de popularidade e instrumento de legitimação de todas as suas políticas: o referendo.
Acusam Chávez de despotismo, mas observadores americanos nunca encontraram irregularidades em eleições venezuelanas.

Em sua primeira consulta pública, Chávez conseguiu aprovar, com o aval de 88% da população, uma reforma constitucional que permitiu suas reeleições sucessivas. Pouco depois desta vitória, o comandante convocou eleições legislativas que garantiram a seus partidários 95% das cadeiras da Assembleia. A primeira grande medida da nova Câmara despertou a discussão sobre a qualidade da democracia bolivariana: em agosto de 1999, os socialistas garantiram a si próprios a premissa de dissolver instituições públicas e demitir sumariamente oficiais acusados de corrupção. Estas iniciativas também foram a referendo, mas apenas metade dos venezuelanos compareceu as urnas para aprová-las, com 72% dos votos. 

Embora internamente começassem a pipocar acusações de que Chávez era um autocrata, que havia encontrado um artífice populista para se legitimar indefinidamente e cercear o campo da oposição, a solidariedade vinha de fora. Uma nova esquerda gradualmente ocupava o espaço das velhas oligarquias à frente de outras democracias regionais. Chávez via emergir na América Latina líderes como Lula, Evo Morales, Rafael Correa, Michelle Bachelet e os Kirchners, que o tirariam de seu relativo isolamento e lhe permitiriam vislumbrar a aplicação prática de seu plano de internacionalização da revolução bolivariana.

Túmulo da ALCAEm 2005, antes de participar da III Cúpula dos Povos, em Mar del Plata, Chávez proclamou em um estádio com 40 mil pessoas, que ali seria enterrada a Alca. "Cada um de nós trouxe a pá de enterrador da Alca, porque aqui, em Mar del Plata, fica o túmulo da Alca", disse. De fato, dali em diante, a nova América Latina, majoritariamente esquerdista, eliminaria da pauta as propostas integrais de livre comércio com os Estados Unidos e se concentraria em acordos multilaterais regionais.

À frente de seu talk show, Hugo Chávez contava piadas, atendia a telefonemas, cantava e até dava conselhos amorosos.

Cada país a seu modo, todas as sociais-democracias da região passariam a contestar sistematicamente os interesses norteamericanos. E, na Organização dos Estados Americanos, levariam a prática adiante com um discurso cada vez mais coeso e unitário. Esta oposição reiterada da América do Sul ao “imperalismo yankee” – para empregar uma expressão querida do comandante – teve seu ápice na última Cúpula das Américas, da qual os Estados Unidos saíram de mãos abanando, conforme todos os membros condicionaram sua participação à aceitação da legitimidade de Cuba. 

Cantor, humorista e Chefe de Estado 
Desde que criou, ainda em 1999, seu programa de rádio “Alô, presidente”, Chávez se caracterizou por um estilo pouco ortodoxo de se dirigir à população. Nas horas e horas em que passava à frente de seu talk show, o presidente contava piadas, atendia a telefonemas de ouvintes/eleitores, cantava e até dava conselhos amorosos.

Este estilo quase caricato se estendia para as relações internacionais, como quando ele discursou depois do ex-presidente George W. Bush na Assembleia Geral da ONU em 2006. Antes de um discurso em que chamaria o outro de "alcoólatra, doente e complexado", Chávez disse: "Ontem o diabo esteve aqui. Ainda sinto cheiro de enxofre". E se benzeu.

Hugo Chávez bateu uma aposta com Bush: "Veremos quem dura mais no poder: eu ou o senhor". Claro que Chávez ganhou.

Ou quando respondeu ao rei Juan Carlos da Espanha, o caçador de elefantes, que o havia mandado calar a boca, durante a Cúpula Ibero-Americana de 2007. "Disseram que o rei ficou bravo como um touro. Mas eu sou toureiro. Olé!" Ou ainda quando bateu uma aposta com George W. Bush: "Vamos ver quem dura mais: o senhor, na Casa Branca, ou eu, no Miraflores". Claro que esta, ele ganhou.  


Se pesam sobre o comandante acusações de autocracia e despotismo, é inegável que os observadores norte-americanos nunca encontraram qualquer irregularidade que lhes permitisse deixar de ratificar as sucessivas eleições venezuelanas. Já nos Estados Unidos... Al Gore que fale das estratégias (nada) republicanas usadas por Bush ganhar a eleição.

Rastro do Condor
E mesmo para ganhar o poder além-mares. Afinal de contas, era George W. Bush quem ocupava a Casa Branca quando a oposição venezuelana tentou derrubar o chavismo com um golpe de estado em abril de 2002. Nas menos de 48 horas que permaneceu no poder depois que seus partidários prenderam Hugo Chávez, o presidente da Fedecámaras (principal associação da indústria no país), Pedro Carmona, dissolveu todas as instituições democráticas e se outorgou poderes extraordinários. Mas, com apoio da maioria da população e militares fiéis ao presidente eleito, o vice Diosdado Cabello forçou a renúncia de Carmona e assumiu o governo provisório até a volta do presidente, que aconteceria no dia seguinte, 14 de abril.

George Bush sempre negou envolvimento no desastrado golpe. Mas o próprio ex-presidente americano Jimmy Carter, que atuou como observador internacional em dois referendos constitucionais chavistas, afirmou em entrevista ao jornal colombiano El Tiempo, em 2009, que os Estados Unidos "sabiam ou tiveram participação direta" no golpe.

Em 2011, o site Wikileaks vazou uma série de documentos que mostravam como o Departamento de Estado dos Estados Unidos vinha financiando a maioria dos partidos de oposição ao chavismo por meio meio da embaixada norte-americana em Caracas e de uma agência do Congresso dos EUA, chamada de Renda Nacional para a Democracia (NED, na sigla em inglês).

Oposição
O golpe deu errado mas, pouco tempo depois, 120 oficiais do exército declararam-se em insubordinação por não concordar com o governo. Com amplo apoio midiático, o movimento ganhou simpatizantes entre a população e estourou de vez quando uma parte dos funcionários da PDVSA entrou em greve.

Mas o país se dividiu, conforme os setores chavistas começaram a ir para a rua. A oposição manifestava-se pelos bairros de classe média e média alta de Caracas, enquanto os partidários de Chávez tomavam a praça Bolívar, os arredores do Palácio Miraflores e a sede principal da PDVSA. Com a ajuda de uma força internacional capitaneada pelo presidente brasileiro Lula, Chávez conseguiu restabelecer a PDVSA.

Em 2003, a direita pediu a saída de Hugo Chávez. Chávez saiu fortalecido e aumentou o tom na política externa.
A direita reuniu-se novamente, seguidas vezes, em protestos pela saída do presidente. Em agosto de 2003, ela apresentou uma lista com mais de 3 milhões de assinaturas, pedindo que se realizasse um Referendo para consultar a população sobre a legitimidade de Chávez. Em 15 de agosto de 2004, 58% dos venezuelanos votaram pela permanência do presidente. Chávez ficou mais forte e aumentou o tom na política internacional. A oposição, por sua vez, substituiu a via golpista pela democrática. E, nas urnas, perdeu mais duas eleições para o chavismo.

Contra-ataque constitucionalMais uma vez referendado internamente, Chávez deu um duro golpe na oposição, ao não renovar a concessão da Rádio Caracas Televisión (RCTV, principal canal de televisão da Venezuela, cuja programação estava no ar havia mais de meio século). O canal havia incitado a greve na PDVSA e participado abertamente no Golpe de Estado contra o chavismo. Já que TV aberta é concessão pública, infringir as regras da democracia foi motivo de sobra para o Tribunal Superior de Justiça (TSJ) da Venezuela determinar o confisco do equipamento de difusão e o fim da autorização de funcionamento do canal.

Às 23h59 do dia 27 de maio de 2007, a RCTV encerrou sua programação. Depois de quase dez segundos de estática, os televisores venezuelanos exibiram o logo da TVes, a rede estatal que substituiria o antigo canal mais popular do país. Foram 20 minutos de imagem congelada, antes que o hino nacional venezuelano iniciasse uma nova fase do controle estatal da mídia no país, que a oposição interpretou como um eco de autoritarismo. Para os chavistas, que não viam o controle oligárquico da mídia como sinal de "liberdade", a medida era perfeitamente justificada, não só pela Constituição mas pelas próprias leis nacionais de transmissão de rádio e TV.

O documentário irlandês “The revolution will not be televised”, que rendeu vários prêmios internacionais aos diretores  Kim Bartley e Donnacha O’ Briain, acompanha os dias que antecederam o golpe de estado e, principalmente, o envolvimento dos veículos de mídia nos acontecimentos. A cobertura que a RCTV fez das manifestações que desencadearam o golpe foi determinante para a tomada do palácio Miraflores. Como mostra o filme, a emissora promoveu um jogo de imagem conhecido no meio televisivo como “trucagem”, para dar a entender que chavistas teriam disparado armas de fogo contra manifestantes da oposição.

Cenas de partidários do governo atirando de cima de uma ponte são editadas com imagens de opositores desfalecidos, cobertos de sangue. Mas, como mostra o filme, as balas dos chavistas jamais poderiam ter atingido estas pessoas, já que a manifestação contra o governo sequer passou sob a ponte. Na verdade, os governistas que estão sobre a ponte disparam contra atiradores de elite posicionados em prédios ao redor - os verdadeiros responsáveis pelas balas que mataram opositores.

Pode-se discutir se a “trucagem” respalda o argumento da Assembleia de que a RCTV apoiou deliberadamente o golpe de estado. Mas é fato que a edição das imagens busca orientar a opinião pública contra o governo. Se isso é suficiente ou não para negar a renovação da concessão, esta é outra discussão, que não sairá do debate tão cedo.

Até 2031
A edição de 25 de julho de 2011 do jornal Correo del Orinoco, ligado ao governo, estampava na capa a manchete: "Chávez será candidato em 2012". Em uma matéria de três páginas, o presidente disse que nunca havia se sentido melhor, "em espírito, ânimo, alma e corpo". E fez uma promessa ambiciosa que, certamente, arrepiou os cabelos da oposição: "Estou disposto a chegar até 2031", com direito a uma "década de ouro", entre 2020-2030.

Se dependesse da má vontade do status quo com a distribuição de riqueza, a tal década de ouro seria repleta de acusações de manipulação do aparelho de estado, violação de direitos humanos, censura e autocracia. Mas é fato que dificilmente os progressos que Chávez garantiu às parcelas mais pobres do povo venezuelano se apagarão do panorama social no país. Tampouco sumirão do mapa suas contribuições reais à integração da América Latina. Como toda personalidade política complexa, é preciso que o tempo se encarregue de fazer uma análise justa do que foi e do que significou Hugo Rafael Chávez Frías, com seus defeitos e qualidades, mas sem o maniqueísmo com que foram marcadas as análises que, nós, profissionais de mídia fizemos dele em vida.

 
Publicado originalmente pela Radio France Internationale, a 6 de março de 2013.
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