As veias abertas no Memorial da América Latina, em São Paulo. Foto: Roberto Alegre/Flickr
Ninguém sabe muito bem definir o que é ser latinoamericano. Mas todo mundo que é sabe que é. Via de regra, latino-americanos se veem como amigáveis, sociáveis, informais, talvez um pouco folgados. A cordialidade, no sentido radical que Sérgio Buarque de Hollanda emprega à palavra, não se restringe ao Brasil; é um dado marcante da maioria das sociedades latino-americanas. Somos um continente de gente passional e apaixonada, que faz amor e guerra na mesma intensidade, que chora e é capaz de matar por um jogo de futebol, mas é familiar, solidário, hospitaleiro e tolerante; ao mesmo tempo em que agride e assassina mulheres e homossexuais como em nenhum outro canto do planeta.
Há também um traço geral de aversão à ordem, uma espécie de rebeldia generalizada que, no entanto, raramente se traduz em revolta organizada ou em movimentos revolucionários. Este tipo de circunstância mais explosiva ocorre em comunidades étnicas e econômicas específicas, não necessariamente como fruto desta característica cordial. São as identidades regionais que eclodem movimentos de contestação em larga escala, como Chiapas, Oaxaca, o Exército Zapatista, a Revolução Sandinista e mesmo movimentos históricos, como Canudos e as repúblicas quilombolas Saramaca, no Suriname, ou Palmares, no Brasil.
Orgulhos e nacionalismos
Paradoxalmente, todos os países têm um inegável orgulho nacional, que dá à luz frequentes rivalidades, mas raramente descamba para conflitos deliberados. Brasileiros não gostam de argentinos por causa do futebol. Argentinos não gostam de chilenos por causa do colaboracionismo de Pinochet com a invasão britânica das Malvinas. Preconceituosos, tanto do Brasil quanto da Argentina e do Chile, não gostam de bolivianos ou peruanos, a quem acusam de imigrar para "roubar empregos" - ainda que nem brasileiros nem argentinos nem chilenos cobicem os empregos ocupados por bolivianos e peruanos. Colombianos e venezuelanos não se bicam porque representam lados opostos em uma polarização política que, neste momento, divide o continente inteiro.
Ou seja, somos um povo dado a nacionalismos dos mais variados tipos. Claro que isso se justifica por nossa história, tão fortemente marcada pela destruição de identidades culturais. Temos uma carência identitária sistêmica. Mas, justamente por isso, o nacionalismo não diz respeito simplesmente ao orgulho de pertencimento ao Estado nacional. Temos o orgulho do pertencimento a uma casa, a uma rua, a um bairro, a uma zona da cidade, a uma cidade, a um estado, a um país e, finalmente, a um continente.
Se os micronacionalismos se manifestam no cotidiano, o continental costuma chamar mais atenção de quem já viveu fora. É comum entre pessoas que fizeram intercâmbios estudantis ou trabalharam no exterior dizer que a maior parte de seus amigos fora do país era latino-americana, ainda que não necessariamente da mesma nacionalidade. Dentro do continente, as identidades nacionais se reforçam, sem no entanto, se sobrepor às culturais.
Além da questão do pertencimento cultural, resiste na América Latina um orgulho de pertencimento à própria terra, talvez por conta da história de expropriação de bens territoriais. É preciso lembrar, como faz o grande autor uruguaio Eduardo Galeano no seu "Veias Abertas da América Latina" (livro que Hugo Chávez deu de presente a Barack Obama em uma cúpula da OEA), que nosso território foi o maior foco de extrativismo capitalista da história. A riqueza das grandes nações foi construída com matéria-prima latino-americana e mão-de-obra africana, com pleno consentimento de nossas elites, até hoje oligárquicas.
Na maior parte da nossa história, essas elites foram estabelecidas alhures e trabalharam ativamente pela transferência da riqueza latino-americana, primeiro para a Europa e, depois, para os Estados Unidos. Não é à toa que, em nosso primeiro ciclo democrático de proporções continentais, os povos da América Latina elegeram governos progressistas, fortemente ligados a identidades locais.
Ciclo progressista
No Brasil, empossamos o ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva; a Venezuela elegeu Hugo Chávez Frias, um militar insubordinado mestiço; a Bolívia foi com o índio cocalero Evo Morales; a Argentina resgatou o legado peronista nos anos Kirchner; Rafael Correa, cujo pai era mula (transportador de cocaína para os Estados Unidos) e a mãe cozinheira, assumiu o Equador; Fernando Lugo, padre da Teologia da Libertação fortemente ligado aos movimentos sociais, o Paraguai; o ex-guerrilheiro e preso político José "Pepe" Mujica, foi eleito no vizinho Uruguai.
A vitória recente do liberal Maurício Macri na Argentina, a longa agonia midiática que culminou em golpe no Brasil e a derrota de Evo Morales em um referendo para autorizar seu quarto mandato parecem ser as últimas pedras sobre a sepultura do ciclo progressista na América Latina. Essa foi uma época marcada por inclusão social e promessas de autonomia que, via de regra, se mostraram menos sólidas do que se anunciava. No Brasil, por exemplo, uma das grandes críticas à esquerda do PT é que os governos Lula e Dilma formaram consumidores, mas não cidadãos. A consequência direta desse processo de inclusão sem politização seria o crescimento de uma lógica "meritocrática", que impulsiona um conservadorismo generalizado em defesa da propriedade e não de ideais e bens imateriais.
No caso da Venezuela e da Bolívia, à maneira do que já acontecia em Cuba, houve uma excessiva personalização do movimento progressista em torno dos "comandantes em chefe", respectivamente Chávez e Morales. Na ausência dessas figuras fortes, o processo inclusivista - que ressuscitou a economia boliviana, praticamente erradicou o analfabetismo na Venezuela e criou uma rede interamericana de solidariedade petrolífera - se vê ameaçado. O atual mandatário venezuelano, Nicolás Maduro, já mostrou não ter o carisma ou a competência para dar continuidade à "revolução bolivariana". A Bolívia, depois do rechaço - pequeno, mas efetivo - à possibilidade de um quarto mandato do presidente cocalero, deve se perguntar seriamente qual quadro do Movimiento al Socialismo estaria apto a herdar o "evismo".
No Brasil, pôde-se observar processo parecido, com a transição de Lula, que deixou o Planalto com mais 80% de aprovação, para Dilma Rousseff, que, antes de completar o primeiro ano do segundo mandato, ostentava a maior rejeição da história da presidência nacional. E na Argentina, a figura de Juán Domingo Perón é tão forte que a esquerda não se designa socialista, mas peronista.
Ou seja, pode-se dizer que o personalismo é uma característica mais ou menos geral da política latino-americana - e que, obviamente, mantém uma relação dialética com a sociedade em geral. Em outras palavras, os líderes carismáticos e a sociedade que os propicia se nutrem mutuamente um do outro. E talvez este personalismo (e a consequente incapacidade dos grupos políticos de formar novas lideranças viáveis) seja uma das razões - obviamente, não a única - pelas quais é quase seguro afirmar que este primeiro ciclo progressista da história latino-americana está perto do fim. Simplesmente não há quadros carismáticos que deem sequência a um processo político que não criou mecanismos para prescindir de líderes carismáticos.
Polarização política
Não será uma morte tranquila, ao que indica a sensação generalizada de polarização política. Fontes argentinas dizem que o país está rachado ao ponto de as discussões descambarem para a violência verbal pura e simples. É um cenário que se pode ver sintetizado na oposição entre a liberalíssima Colômbia e a Venezuela, cujo bolivarianismo parece uma caricatura do que já foi. Um cenário com o qual nós, brasileiros, sejamos coxinhas ou petralhas, certamente podemos nos identificar.
Esses próprios rótulos são indício da morte do diálogo entre dois projetos opostos de integração regional: um exclusivamente econômico, que tende a restringir os direitos humanos e ampliar a liberdade de capitais; e outro social-democrata, que também visa a ampliação da circulação de capitais e o desenvolvimentismo, mas com uma contrapartida social. Ao que parece, nenhum dos dois lados é profundamente preocupado com as questões ambientais e ambos acreditam na receita do crescimento como forma de geração de riqueza - ainda que, ideologicamente, um defenda a distribuição e o outro, a acumulação.
Se a esquerda acredita no desenvolvimento sustentável, está acuada demais para dizê-lo no inverno de sua primazia continental. Nem os partidos ditos "verdes" ousam apontar a fórmula da ampliação da produção, do reforço do atividade econômica, da medição da riqueza pelo PIB, como responsáveis por nossa inexorável marcha à autodestruição. Mas a falta de propostas realmente ousadas de enfrentamento às grandes questões de nossa época não é basta para que se estabeleça uma pauta de diálogo possível entre os dois polos da América Latina pós-ciclo progressista.
Reggaeton: um ritmo, dois projetos de mundo
Duas canções e seus respectivos videoclipes podem fornecer pistas para a análise do clima ideológico no auge e no ocaso do ciclo progressista: Latinoamerica (2011), do grupo portorriquenho de reggaeton Calle 13; e La Gozadera (2016), da dupla cubana (também de reggaeton) Gente de Zona, com participação do astro latino-estadunidense Marc Anthony. A primeira reúne cantoras de todo o continente, historicamente identificadas com a esquerda, da colombiana Totó la Momposina à deputada socialista peruana Susana Baca. O Brasil é representado por Maria Rita, que tem tanto pedigree que dispensa discografia.
O videoclipe, cujo protagonista é o povão, começa com os artistas chegando ao estúdio de uma rádio comunitária da América andina. Eles são anunciados pelo locutor em quechua. Os primeiros acordes entram no ritmo de um coração que bate sob a terra. "Sou o que deixaram/sou toda a sobra do que roubaram/(...) Mão de obra camponesa para seu consumo", começa a letra, para seguir em crescendo "(...)Sou o desenvolvimento em carne viva/um discurso político sem saliva/As caras mais bonitas que já conheci, sou a fotografia de um desaparecido/Sou o sangue dentro de suas veias/sou um pedaço de terra que vale a pena/Sou uma cumbuca de feijão/Sou Maradona contra a Inglaterra marcando dois gols/Sou o que defende minha bandeira/A espinha dorsal do planeta é minha cordilheira/Sou o que me ensinou meu pai/Aquele que não ama sua pátria, não ama sua mãe/Sou América Latina, um povo sem pernas, mas que caminha".
Como fica claro no refrão ("Esta terra não se vende") ou em versos como "A Operação Condor invadindo meu ninho, perdoo mas nunca esqueço" e "Aqui se respira luta", a letra é uma ode ao sonho de Eduardo Galeano de integração alternativa, que substituiria o que ele chamava de "sacrifícios no altar do Deus mercado" pela prioridade às vontades, aspirações e necessidades dos povos. Este sonho parecia começar a se desenhar com a morte da ALCA (a Área de Livre Comércio das Américas promovida pela administração George W. Bush e enterrada com grande alarde pelos "socialistas do século XXI") e a emergência de um "Novo Mundo Possível" durante o Fórum Social Mundial, na alvorada do novo milênio, em Porto Alegre.
Aquele foi um primeiro passo para uma nova era de autonomia, que seria muito bem simbolizada pela recusa coletiva dos líderes latino-americanos em aceitar a presença de Barack Obama na cúpula da OEA (Organização dos Estados Americanos) depois de 2012, caso o mandatário norte-americano se recusasse a reconhecer o Estado cubano. Vale lembrar que Cuba foi excluída do organismo com a instituição do embargo econômico, em 1962. A partir daquele ano, aceleraram-se as conversas de bastidores entre Washington e Havana, que culminaram no restabelecimento das relações diplomáticas entre os inimigos históricos em 2015.
Obviamente, os Estados Unidos não desistiram de seu plano de integração econômica, ainda que a Nafta tenha sido uma catástrofe humanitária para o México. É neste contexto de guinada neoliberal, fracasso do projeto político alternativo e reaproximação dos norte-americanos de seus vizinhos (e durante quase meio século, quintal) ao sul, que aparece a "La Gozadera", da Gente de Zona com o nova-iorquino e ex-marido de Jennifer Lopez Marc Anthony.
Por uma questão burocrática, o vídeo foi gravado na capital de Porto Rico, San Juan. Mas a cidade é obviamente caracterizada de forma a reproduzir Centro Habana, o bairro popular no coração da capital cubana. E a moldura ideológica não podia ser mais descarada: mostra literalmente o americano que vem resgatar Cuba do "atraso". Os artistas cubanos começam o vídeo discutindo escandalosamente depois de bater sua máquina, como são chamados os carros cinquentistas que rodam a ilha até com motor de geladeira, contra um hidrante. Os dois decidem deixar o acidente para lá, sobem em cima do carro e começam a cantar. Marc Anthony surge por entre roupas estendidas em um varal das típicas azoteas (lajes) cubanas e entra a letra: "Miami me confirmou, Porto Rico me presenteou, Dominicana já respondeu e do Caribe tem você e eu, e se formou a gozadera" que, em bom cubanês, quer dizer festa. Então, de cada carro parado num trânsito extraordinariamente engarrafado para os padrões de Centro-Havana sai uma pessoa andrógina, vestida na bandeira de um país latinoamericano. E todos correm para a grande festa da integração que, ao contrário do que acontece em Latinoamerica, não se faz pela luta, mas pelo hedonismo.
Depois de muita dança, muita batida e pouca poesia, o clipe termina literalmente com Marc Anthony conduzindo o caminhão-grua que reboca a máquina quebrada dos cubanos. Característica da estética publicitária, a imagem não deixa qualquer espaço para a livre interpretação: o neoliberalismo finalmente veio a reboque tirar a América Latina do atraso e encher de gente bonita e antiscéptica uma Havana exageradamente popular.
Com estes dois vídeos e essas duas poesias tão distintas, é possível constatar como a América Latina mudou desde o início da década de 2010. Se começamos o período tentando integrar Cuba à Petrocaribe, à Alba e à OEA, terminamos reproduzindo com a ilha comunista o processo de integração pelo consumo que observamos no Brasil e que terminou por transformar o exército de reserva da esquerda em uma proto-classe média empobrecida e apavorada, de contornos fascistóides. Por isso, o que vier a acontecer com Cuba nos próximos anos será fundamental para compreender o encerramento do ciclo progressista e o futuro das relações entre o continente e o vizinho rico ao norte.
América Latina através do muro
Será que a estética reggaetonera de Havana vai substituir o mexicano de sombrero na caricatura imperialista do caráter latino-americano? Quem será a Carmen Miranda da nova política da Boa Vizinhança, essa que chegará pela desconstrução do maior ponto de convergência insurrecional do continente, que é a Revolução Cubana? Como advertiu o ex-Pantera Negra Mumia Abu-Jamal durante uma participação telefônica no ciclo de seminários The Black Radical Thought, que reuniu as militantes do Black Lives Matter com antigas lideranças negras, "a tática do império é sistematicamente substituir desafetos por gente de sua confiança".
Mas e se a pessoa de confiança for um símbolo? E se for o próprio Che Guevara, por exemplo? Claro, não aquele Che Guevara que se desentendeu com Fidel Castro, partiu para a internacionalização da luta comunista no Congo e foi morto pelo exército boliviano, mas o Che Guevara que estampa camisetas - às vezes, com a cara substituída pela de Homer Simpson; às vezes, com as orelhas do Mickey no lugar da estrela vermelha. Cuba é a novidade, é o novo porto de conquista das mentes e corações latinoamericanos pelo discurso hegemonista do "Deus mercado", principalmente depois da desestruturação da integração solidária que despontava no início do século XXI.
Marc Anthony faz um papel em que os Estados Unidos se especializaram há mais de 70 anos: o de embaixador cultural que padroniza e ressignifica a cultura latino-americana para um standard destinado ao consumo da própria massa latino-americana. É quase uma antropofagia terceirizada. Se, no início do milênio, vivemos uma década de reinvenção do ser latino-americano pelas bases populares, é de se esperar que esta reinvenção volte a cruzar o filtro do imperialismo cultural. A própria esquerda preparou o exército consumidor no campo em que prometeu formar cidadãos.
Padrões de consumo
É comum ouvir latino-americanos verem as populações de seus países como consumistas, excessivamente preocupadas com a imagem, pouco educadas e meio deslumbradas. Não chega a ser surpreendente que um reggaeton descompromissado, uma versão em espanhol do funk ostentação tenha ocupado no gosto popular latino-americano um espaço que, em outros momentos, pertenceu a músicas contestatórias ou identitárias. A identidade na cultura reggaetonera ostensiva se constrói pela aparência e a exibição do que se tem, não pelo que se é.
Talvez por isso, vários países latinoamericanos apareçam com frequência nos rankings de uso de redes sociais, principalmente o Facebook, uma plataforma exibicionista por excelência. Uma pesquisa de 2013 mostrava que, mesmo sem ser o país mais presente na rede social em números absolutos, o Brasil ostentava os usuários mais ativos no Facebook. Também sintomático do poder da ostentação nas redes é o fato de que os usuários latinoamericanos em geral confiam mais em celebridades na internet do que em seus próprios amigos.
Claro que o poder público, da mesma maneira que detectou a predileção latino-americana por líderes carismáticos, entendeu rapidinho o poder da comunicação em rede. A mesma pesquisa mostrava que os chefes de Estado latinoamericanos estavam entre os que mais se comunicavam pelo Twitter. O presidente com maior número de seguidores era, claro, Barack Obama. Mas o segundo colocado era Hugo Chávez. Cristina Kirchner, Dilma Rousseff, Enrique Peña Nieto e Juan Manuel Santos estavam todos na lista dos dez mais populares.
Quem tem mais exposição, mais fama, mais dinheiro e maior poder de propagação virtual tem maior credibilidade. Não precisa nem ser especialista nos assuntos que comenta. Até porque as pessoas se tornam especialistas não por formação, mas por popularidade nas redes, como é o caso das webcelebridades. E a América Latina tem uma particularidade cultural que facilita a propagação não só das celebridades, mas de fenômenos culturais em geral, do reggaeton à youtuber mexicana Yuya que, com suas dicas de maquiagem, percorre diversos países do continente. Trata-se do fato de que as fronteiras geopolíticas não refletem necessariamente limites culturais.
Se internamente, isso facilita nossa identificação com os vizinhos, do lado norte da fronteira continental, gera estereótipos em escala industrial. E, do norte do México ao extremo-sul da Argentina, latinoamericanos detestam ser retratados por figuras generalizantes, como o mariachi de sombrero, a morenaça hipersexualizada ou índio de poncho.
Por outro lado, existe a admiração vira-lata pelo que parece estrangeiro. Em entrevistas com quase 20 latinos de quatro países, foi possível detectar uma gritante contradição entre beleza idealizada, a beleza natural e autodescrição física. Loiros e pessoas muito brancas estão longe do que os latinoamericanos entendem por beleza natural e mais longe ainda de sua autodescrição. Mas aparecem em profusão quando se pergunta o que é beleza idealizada.
Esta distância entre o ideal e o real é ainda maior no caso da autodescrição física: as pessoas se dizem, em geral, baixas, escuras, sem traços europeus marcantes. Isso faz da propaganda na América Latina praticamente a antítese da identidade latinoamericana. A maioria das reinas que ditam a beleza na Venezuela podia ter nascido na Suíça. Ninguém que a gente vê pelas ruas do Brasil se parece com a Gisele Bündchen, símbolo maior da beleza brasileira no exterior. E no entanto, os estrangeiros acham que as brasileiras, justamente aquelas que não parecem com Gisele Bündchen estão entre as mulheres mais lindas do mundo. Será que a grama do vizinho é mais verde ou, de novo, somos nós que temos uma dificuldade meio vira-lata em aceitar quem nós somos?
Feminismo, preconceitos e religião
Talvez isso possa começar a mudar graças a dois movimentos de reivindicação identitária que varrem o continente de norte a sul: das mulheres e dos homossexuais. Talvez 2015 tenha sido o ano do empoderamento feminino na América Latina. Assim como na Primavera Árabe, as hashtags se transformaram em armas de internacionalização da luta política. De um extremo a outro do continente, pela primeira vez na história, estabeleceu-se um mesmo slogan libertário, na forma da hashtag #NiUnaMenos, que reivindicava o fim do feminicídio, mas dava espaço a outras pautas feministas, como a equidade de salários entre homens e mulheres ou a legalização do aborto. Não por acaso, foi neste ano que Brasil e Argentina, por exemplo, tipificaram o crime de feminicídio.
Também na última década, vários Estados latinoamericanos legalizaram a União Civil entre pessoas do mesmo sexo. É preciso sinalizar, no entanto, que a homofobia ainda é muito presente - frequentemente de forma violenta - e periga crescer, já que observa-se um aumento exponencial não só do pensamento conservador que já comentamos, mas também das igrejas pentecostais. Entrevistados de todos os países se disseram preocupados com o fato de que cada vez mais grupos religiosos fundamentalistas têm proliferado de maneira imprecedente e arrastado populações inteiras a um pensamento monolítico e intolerante às diferenças.
Claro que os negros também vão se molhar na tempestade fundamentalista, já que, como explica Slavoj Zizek, em termos filosóficos, as igrejas que aceitam conversões em massa tendem à intolerância, por uma questão de lógica bem simples: "se todos os seres humanos cabem em nosso rebanho, aqueles que estão fora do rebanho não são seres humanos".
Isso se expressa com clareza na demonização das manifestações religiosas de matriz africana. E com um agravante: ao contrário do que acontece no cristianismo, cujo espaço ecumênico é separado da vida cotidiana e o sagrado vive em divórcio litigioso com o profano, as religiões de matriz africana não têm um espaço cartesiano determinado e se integram ao cotidiano de forma orgânica. Assim, o rechaço à expressão religiosa se expande como rechaço à cultura afrodescendente geral, transformando o discurso diabolizante em um método de eugenia cultural. Filosoficamente - e às vezes efetivamente -, as pentecostais fazem na América Latina o que o Estado Islâmico faz no Oriente Médio: aplainar diferenças culturais e promover uma liberalização econômica radical.
Monopólio midiático e formação de opinião
Esse discurso eugenista já está na televisão latinoamericana, não só no tele-evangelismo, que se propaga em proporções alarmantes, mas na televisão aberta, corriqueira e "inocente", cuja única característica distintiva aparente são os sotaques. Seja no Peru, no Chile ou no Brasil, existe um mesmo tipo de apresentador para uma mesma categoria de programa e todos têm a mesma estética.
Poderíamos seguramente dizer que Mirtha Legrand é a Hebe Camargo da Argentina. Ou que o argentino Marcelo Tinelli, uma celebridade continental, é a edição hispanofônica de nosso Luciano Huck. Ou ainda que a Caracol é a Globo da Colômbia, a Televisa, a do México, a RCTV, a versão colombiana etc. Temos um tipo de estrutura midiática oligárquica que se alastra por todo um continente de baixo nível de letramento e se torna um verdadeiro poder paralelo.
Isso atenta contra a democracia, não só porque promove ampla manipulação ideológica, mas porque a mídia não tem qualquer pudor em converter-se em ator político. Há indícios de que esta configuração dos meios de comunicação teve papel fundamental na desestruturação do ciclo progressista latinoamericano. Em 2002, por exemplo, a RCTV participou ativamente de um golpe de Estado contra o presidente Hugo Chávez, eleito democraticamente. Tentativa de golpe de Estado é uma óbvia infração da lei de comunicação em qualquer lugar da terra e, por isso, a RCTV não teve sua concessão renovada. Mas é claro que, no resto da mídia latinoamericana, a não-renovação da concessão à emissora foi muito mais noticiada do que sua participação na intentona.
Há outros exemplos: houve forte apoio dos veículos conservadores da América do Sul ao conglomerado argentino El Clarín que, apesar de ter embargado por quatro anos a aplicação de uma emenda Constitucional aprovada pelos representantes eleitos da população, saiu como grande vítima da Lei de Medios de Cristina Kirchner. A campanha - em que, no fundo, cada um defendia seus próprios monopólios - foi tão intensa que, nem dentro do Mercosul progressista houve apoio à presidência argentina. Para ser eleita, Dilma Rousseff por pouco não jurou sobre a Bíblia que não tocaria na pauta do controle social da mídia. E, mesmo assim, terminou deposta por um golpe deliberadamente apoiado pelos meios de comunicação oligárquicos.
Essa concentração dá enorme poder aos conglomerados midiáticos em ditar tendências de qualquer espécie. Todos os entrevistados, independentemente do país, afirmaram que é a televisão, em suas diversas modalidades, quem determina o que consome a população em geral. Ainda que haja caminhos culturais que influenciam a maneira como as coisas chegam até a TV - caso da paixão dos venezuelanos e colombianos pelos concursos de misses; dos argentinos pela moda internacional; ou dos brasileiros pelo Carnaval -, é a tela quem faz o tête-à-tête com o consumidor.
Lazer
Como todos os apresentadores têm a mesma cara, a mesma voz, a mesma classe social e o mesmo ethos, não é de se admirar que haja uma certa esquizofrenia entre o que as populações latinoamericanas são e o que elas idealizam em termos estéticos. Elas aspiram à estética de uma elite eurocêntrica, que reivindica suas raízes europeias pela negação ou ridicularização da diversidade etnocultural, como nos casos do Zorra Total ou de seu correspondente colombiano, Sábados Felizes. As novelas ainda são unanimidade entre as populações latinoamericanas, mas se veem hoje obrigadas a dividir espaço com toda a sorte de reality shows: dança, cozinha, música, sobrevivência na selva, lo que quieras.
Mas este tipo de narrativa popularesca e estigmatizante tem perdido espaço, como aponta o sucesso de séries internacionais de estrutura complexa, como House of Cards e Game of Thrones, citadas por todos os entrevistados. Valeria uma pesquisa à parte que determinasse como essas séries são vistas e o que apreende delas a média da população latinoamericana. Independentemente do que possamos descobrir, principalmente com uma demografia deste público, não se pode negar que são produções exigentes, centradas em complexas relações político-sociais.
Mas, entre os que veem novelas e os cúmplices brechtianos de Frank Underwood, está o grande circo da América Latina, o futebol. De todas as respostas que obtivemos com as entrevistas, talvez esta seja a mais unânime: a paixão nacional é a bola. Seja nas respostas dos colombianos, que hoje admiram Falcao e James Rodriguez e ontem admiraram Asprilla, Valderrama, Rincón e Higuita; seja na ode argentina à "mano de Dios" que fez injusta justiça a todo um continente invadido; seja no orgulho mexicano de seu monumental estádio Azteca.
Como disse o inglês Franklin Foer, o futebol explica o mundo. Mas se você for à América Latina durante uma Copa do Mundo, há muito pouco que se possa explicar: as fronteiras geopolíticas se sobrepõem às identidades culturais e joga pro espaço a teoria que defendemos até aqui de que as nacionalidades são menos importantes do que as identidades. Quando tem futebol, impõe-se a bandeira nacional e pronto, só a dialética explica. Mas, como já dissemos, somos dados a nacionalismos de qualquer espécie e, mais, somos cordiais. Tudo é apaixonado, fanático. Por isso, tendo a pensar que o coração que bate sob a terra de Latinoamerica tende a durar mais que a Gozeada da abertura econômica.
Artigo escrito em 9 de fevereiro de 2016
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