24 outubro, 2016

Menestrel está para a KKK como o Pânico está para o Pelourinho do Flamengo


Vi uma série de textos sobre o quanto é racista o tal "desafio do Africano", quadro daquele abismo de preconceitos que é o Pânico na Band. Mas, confesso que o que mais me chamou atenção não foi o grau de racismo embutido na blackface, na animalização do negro, na adoção abertamente racista de "Africano" como nome próprio ou nas referências degradantes a religiões de matriz africana. O que mais me chamou atenção foi ver o grau de precariedade intelectual, desespero e ingenuidade dos racistas. Eles regrediram. Racismo não tem lado bom, mas acredito que dá pra tirar alguma coisa daí. Nem que seja a medida do quanto nosso inimigo anda fraquinho.

Porque o Brasil se notabilizou por formas sofisticadas de racismo; por um racismo que estala no couro preto, mas permanece guardado no armário da democracia racial. Acho que, diante do Africano do Pânico, nós, negros, temos que nos perguntar: quando, como e por que nossas elites econômicas voltaram para o Século XIX? Eu acho que foi - desculpe o trocadilho - por pânico da nossa presença.

Blackface é coisa de show de menestrel, do sul dos Estados Unidos no final dos 1800. Era um entretenimento para toda a família (que, aliás, foi muito bem destrinchado pelo Spike Lee, no filme "Bamboozled"; "A Hora do Show"). Funcionava mais ou menos assim: o proletariado branco agrícola, saudoso da escravidão e querendo expurgar os fantasmas da derrota na Guerra da Secessão, se encontrava diante de um palquinho de madeira, em que brancos pintados de pretos roubavam galinhas, comiam melancia e sapateavam. Os pretos de verdade, quando apareciam nessas festas, eram pendurados pelo pescoço numa árvore.

Depois, o pessoal tirava uma bela foto sorridente com o cadáver e ia para casa (des)vestir seus pijamas da KKK. Essas fotos eram colocadas em cartões postais e enviadas para parentes de outras comarcas, que respondiam com retratos de seus próprios "hanging niggers" (crioulos pendurados). Algo parecido com o que aconteceu no Brasil no ano passado, com o Pelourinho do Aterro do Flamengo. Lembra como o pessoal compartilhava jovialmente na internet suas próprias fotos de um menino negro, nu, humilhado, espancado e amarrado a um poste?

Tá aí! o Show de Menestrel está para a Ku-Klux Klan como o Pânico está para os linchadores do Flamengo. A blackface nada mais é do que um elo simbólico entre esses dois contextos, além de um bom exemplo da falta de sutileza disso que se convencionou chamar de "humor" no Brasil. E se é na sutileza que reside o humor mais inteligente e refinado, o "Africano" mostra mais o quanto falta humor do que o quanto sobra racismo pras elites do Brasil. Porque o racismo é velho de guerra. Ninguém descobriu ele agora. Quer dizer, se você só descobriu o racismo brasileiro com o quadro do Africano, pode se declarar branco no senso do IBGE, sem chance de errar.

Voltando: quando digo que essa história toda tem um lado quase bom, me refiro ao fato de que nosso arsenal para a guerra antirracista é muito maior do que era o dos negros do século XIX. E não só porque ouvimos Malcolm X escancarar a face da América racista - "Eu acuso o homem branco por ser o maior estuprador, o maior assassino e o maior ladrão da Terra!"; Não só porque lemos o programa dos Panteras Negras e extraímos as famigeradas cotas do quinto ponto ("Queremos uma educação que exponha a verdadeira natureza dessa sociedade americana racista; queremos uma educação que nos ensine nossa verdadeira história e nosso verdadeiro papel na sociedade contemporânea"). Não só porque entendemos quando Angela Davis explicou que a cadeia "foi feita para destruir seres humanos e converter pessoas em animais de zoológico - obedientes aos carcereiros e perigosos uns para os outros".

Não só por isso tudo, mas porque passamos a vida inteira enfrentando o racismo em duas frentes: uma delas é a descriminação em si. A outra é a retórica da democracia racial, que diz que o racismo é fruto da mente paranóica do negro. A discriminação mata os pretos, individual e coletivamente, como mostram diariamente as Mães de Maio. A retórica mata a luta, porque converte o racismo real, claro e objetivo, em objeto de fantasia.

Esse duplo racismo é sofisticado, mas obriga a gente sofisticar também a luta. E é por isso que, no Brasil, a denúncia do preconceito é tão importante quanto a luta direta contra ele. Por isso que vimos João Cândido virar todos os canhões da Marinha contra o Palácio do Governo, no Rio de Janeiro, para denunciar o açoitamento de marinheiros negros. Vimos o Ilê Aiyê - Oficial, debaixo da ditadura, sair para rua só com preto e dizer: "branco, se você soubesse o valor que preto tem, tomava banho de piche e ficava preto também". E isso sem entregar o ouro, porque "quem dá luz a cego é bengala branca e Santa Luzia". Vimos Abdias, Milton Santos e Joel Zito. Ouvimos revolução, de Marighella a Poeta Sérgio Vaz. Vimos Racionais MC's jogarem de volta, em cima da mesa da sua sala de jantar, o "kit de esgoto a céu aberto e parede madeirite". E agora temos boa esperança com os novos Palmares do Leandro Emicida.

A gente tem pedigree. Vira-Lata é você, que não se liga que ridicularizar o negro no Brasil é cuspir no espelho. Ainda que você se declare branco no IBGE, pro europeu você é tão caricato quanto uma blackface. Então, recado pro Pânico: pra passar, vocês ainda vão ter que comer muito arroz com feijão. Porque nossa luta está mais de um século à frente do seu racismo.

Texto publicado originalmente em 12 de agosto de 2015
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