24 outubro, 2016

Redução da maioridade penal é a antítese da segurança pública


Ato contra redução da maioridade penal em São Paulo, 7 de julho de 2015. Foto: Romerito Pontes/Wikipedia

A redução da maioridade penal não tem nada a ver com segurança pública. É uma mescla de
desonestidade intelectual com populismo e fortes interesses comerciais. Desonestidade intelectual porque os representantes que defendem essa medida querem fingir para seus representados que estão combatendo a violência, sabendo que aumentar a população carcerária só piora o problema. Mas essa hipocrisia é a fachada de interesses econômicos ainda mais escusos. A explosão da população carcerária inviabilizaria a administração pública das cadeias e daria uma ótima desculpa para a privatização do sistema. Isso significaria mais licitações superfaturadas, mais megaconstruções inúteis - porque cadeia não tem nenhum benefício social -, mais concessões administrativas.

No sul dos Estados Unidos - o outro único país em que a população carcerária também cresce deliberadamente - temos um ótimo exemplo do funcionamento das cadeias privatizadas. Elas transformaram a prisão em um negócio de hotelaria, em que as concessionárias são remuneradas, por outras empresas privadas e pelo governo, pelo número de "hóspedes". Porque os presos são valiosos: eles compõem um mercado consumidor literalmente cativo e sem o direito de dizer "não". Isso criou uma corrida aos "candidatos a presos" entre empresas de gestão carcerária: as empresas disputam no tapa os perfis de "clientes" potenciais. E quem é cliente de cadeia? Basicamente, negros e imigrantes. Com isso, começaram a acontecer verdadeiros leilões de carne humana, que levaram à explosão das prisões arbitrárias, com efeitos devastadores para as comunidades.

Tem um outro interesse econômico importante em jogo: para passar a redução da maioridade penal, seria necessário alterar o ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Abaixar a idade limite para a responsabilização penal abriria uma excelente janela para as indústrias do cigarro e da bebida, por exemplo, que vêm perdendo mercado consumidor por conta da hiper-regularização e das campanhas de conscientização. O principal público-alvo dessas indústrias, a única parcela social em que é possível fidelizar consumidores, são os adolescentes. A redução da maioridade penal pode abrir a jurisprudência para uma caça ao jovem consumidor de bebida e tabaco. Isso significa mais lobbistas no Parlamento, mais empresas concorrendo pelo financiamento de campanha, mais dinheiro no bolso dos políticos corruptos e da indústria da droga lícita.

Então, repito: é muito desonesto o debate sobre a redução da maioridade penal. E é profundamente populista, porque instrumentaliza o sentimento que serviu de combustível para todas as escaladas fascistas da história: o medo do "outro" (ou melhor, da projeção imaginária do outro). No caso do nazismo, por exemplo, o outro imaginário era um lobby judaico que controlava - e deteriorava - a vida do povo alemão. O tal lobby judaico não existia na prática, mas sua criação imaginária foi o catalisador da retórica antissemita, que depositava sobre uma minoria a culpa do sofrimento da maioria. O judeu virou o bode expiatório para a crise econômica, política e moral alemã, que, a grosso modo, tinha a ver com a derrota na primeira guerra e com a própria natureza da exploração capitalista, que colocou a classe trabalhadora alemã de joelhos. Apesar de o "lobby judaico" não existir, ele serviu de justificativa para a limpeza étnica.

Hoje, parece absurdo pensar que um discurso tão fraco como esse ("os judeus são responsáveis pela nossa miséria") justifique um genocídio. Mas, para um povo humilhado e explorado, é muito mais conveniente colocar a culpa em um inimigo externo do que culpar a si próprio por sua miséria. E, sabendo que a crise é intrínseca ao sistema, as elites manipulam esses sentimentos para que eles não se transformem em violência revolucionária. Elas redirecionam a raiva para o "outro imaginário", uma parcela da população que é fraca, desprotegida, mas a quem se atribui um poder descomunal. No caso dos judeus, o poder de controle do sistema financeiro, o poder de degradação sexual da boa sociedade alemã. No caso dos adolescentes brasileiros, o poder da violência. E todas as pesquisas mostram que a participação deles nos crimes violentos é mínima, em torno de 1%.

Quer dizer, o menor é o bode expiatório. Mas, por mais falho que que seja, esse discurso é sedutor porque cria uma coesão interna, uma unidade de classe, um espírito de pertencimento que havia sido devastado pela crise política, econômica, social, de representatividade - sim, porque o branco burguês precisa reagir à inclusão social, por mais modesta que ela seja. Dentro da lógica do "outro imaginário", lutamos todos juntos contra um inimigo comum, um inimigo que ataca as raízes mais profundas da nossa identidade social. É por isso que o sentimento nacionalista é a fundação sobre a qual se constrói o fascismo. Não à toa, a bandeira nacional é o figurino das manifestações da burguesia brasileira contra seus inimigos imaginários: a corrupção, a Dilma, a impunidade.

O problema não é a corrupção - basta ver a profusão de camisas da CBF, o apoio ao Eduardo Cunha, os selfies com a PM e até um cartaz que dizia "Sonegação é autodefesa". O problema não é a administração petista, já que ela segue exatamente a cartilha da oposição, com rigor fiscal, distribuição invertida da renda, foco no crescimento econômico e prioridade aos interesses do capital, do empresariado e dos grandes conglomerados de mídia. Como diz meu grande amigo Fernando Ferreira, estão gritando "fora guerrilheira para uma burocrata de carreira".

O problema também está longe de ser a impunidade, já que somos um dos países que mais punem no mundo: temos uma população carcerária em franca ascensão, enquanto o resto do planeta tenta esvaziar as prisões. E punimos errado. Punimos a violência subjetiva, aquela que nos assusta diariamente nas ruas e na televisão, aquela que toca nossos medos mais profundos. Punimos com tortura, cadeia, linchamento, pena de morte. Mas toleramos a violência objetiva, aquela que vitimiza milhões de pessoas ao redor do mundo diariamente, aquela que preferimos não ver.

Também pudera. Quem aguentaria assistir a um vídeo que condensasse o sofrimento diário de todas as vítimas do sistema macro-econômico? Quem aguentaria assistir às consequências de todos os testes de vacinas em crianças africanas? Quem aguentaria ver todas as execuções de pessoas deslocadas pelo agronegócio? Quem aguentaria assistir ao sofrimento de todas as vítimas da exploração energética desenfreada? Quem aguentaria ver todas as deformações causadas pela importação de lixo industrial pelos países da África setentrional? Quem aguentaria olhar os olhos esbugalhados de todos os migrantes que morrem no Mediterrâneo por conta do fechamento das fronteiras europeias? Quem aguentaria assistir aos estupros diários de todas as menores do leste europeu e do sudeste asiático que são traficadas para servir a indústria do sexo? Quem aguentaria ver todos os desmembramentos, unhas arrancadas, olhos vazados que a busca pelo lucro propicia todos os dias? Essa violência do capital, essa violência que está inscrita nas regras do jogo, que está no DNA do sistema, essa a gente prefere não ver.

Mas o nosso daltonismo não se reserva à violência objetiva, ele também infecta nosso olhar sobre a violência cotidiana. Perdoamos o filho do Eike Batista, que explodiu um ciclista. Perdoamos os playboys que queimaram um índio em Brasília. Perdoamos o Geraldo Alckmin, que chefia o maior grupo de extermínio do país, a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Perdoamos a Supervia, que autoriza um trem a passar sobre o cadáver de um vendedor ambulante para evitar atrasos. Perdoamos torturadores, damos a presidência da CBF ao mandante do assassinato do Vladimir Herzog e nomes de ruas a genocidas (Raposo Tavares matou um milhão de índios). Perdoamos todos os que não se enquadram na categoria do "outro imaginário".

E é fácil detectar o "outro imaginário" no discurso pela redução da maioridade penal. Ele está nessa expressão "menor", que só contempla o pobre e o preto. Filho de branco rico ainda é "criança". E criança não tem que ir pra cadeia.

Texto publicado originalmente em 22 de agosto de 2015
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