04 novembro, 2016

Publicidade não existe, isso é propaganda que botaram na sua cabeça

Foto: Propaganda de AK47 na Síria, trazida a você pela Wikipedia


Sabe por que temos medo de terrorismo? Pelo mesmo motivo que temos medo do diabo. Porque é uma entidade imaginária, manipulada pelos mais diversos poderes, da Igreja ao Ministério da Justiça, para instrumentalizar o mais desmobilizador de nossos sentimentos: o medo. Talvez, palavra melhor para "terrorismo" fosse propaganda. Em linhas gerais, a propaganda contemporânea busca forçar que façamos escolhas (não só de consumo, mas de vida) com base em nossas emoções e não na razão. Ela subverte o percurso intelectual de tomada de decisões e transforma em ímpeto consumista sentimentos como a esperança, a carência, o vazio existencial ou o próprio medo, entre vários outros. Ou seja, ela canaliza nossas emoções e determina o consumo como única via de satisfação pessoal.

Pra isso, o próprio consumo perde sua esfera objetiva - consumir é comprar coisas - e é convertido em um sentimento (subjetivo, claro) de plenitude: felicidade, realização, superação do próximo. A única esfera, aliás, em que o "próximo" ser humano existe dentro da lógica da propaganda é como parâmetro do nosso próprio sucesso. Se o sucesso é individualizado a partir da comparação com o próximo, o insucesso também é; ou seja, não existe esfera social para o fracasso ou o sucesso. Isso que é meritocracia: tudo que te acontece é culpa sua, ainda que você tenha nascido sem pai, sem mãe, sem casa nem educação enquanto o próximo veio com tudo isso mais uma viagem à Disneylândia por ano.

É simples introjetar essa lógica. Afinal, os sentimentos que foram canalizados pela máquina propagandística não são invenções, estavam dentro de nós o tempo todo. Com todos os maus sentimentos dentro de você e todos os bons, fora, problema seu se você é incapaz de se satisfazer. Como diz o Slavoj Zizek, vivemos em uma sociedade do pré-gozo, muito bem simbolizada pelas absurdamente contraditórias propagandas de bebidas e cigarros. A propaganda de cerveja te diz beba, com uma tarja preta embaixo dizendo: não beba. A de cigarro diz: fume. E a tarja preta: mas você vai morrer.

É um estado constante de tensão pré-orgasmo. Alguém te estimula até o limite e quando você está pra gozar, essa mesma pessoa para tudo e diz: "se você gozar, você vai morrer". E em seguida, conta que todo mundo está gozando, menos você. Aí, só te resta buscar a auto-ajuda pra que você possa continuar vivendo como o único que não goza. Estamos completamente formatados por essa lógica de substituição do racional pelo sensorial. Aguardamos que nos forneçam as emoções que vão ditar nossas próximas ações, em vez de decidir com nossa cabeça.

O Daesh, que se autoproclama Estado Islâmico e que, no Brasil, chamamos ridiculamente pela sigla em inglês ISIS, entende a lógica de nossos tempos. Ao menos a da propaganda. Quem já viu a revista ou os videoreleases deles sabe do que eu estou falando. Eles estão muito longe de projetar uma imagem de fanáticos religiosos - até porque, não são fanáticos religiosos, são um grupo ultraliberal de coloração política fascista.

Primeira edição da revista do Daesh

A Dabiq, publicada em inglês, parece a revista da Gol, com dicas de consumo e estética, belas paisagens ultraurbanizadas, coisas desse tipo. E os vídeos têm estética hollywoodiana: os combatentes aparecem em treinamentos à la Rambo, com trilha sonora à la Rambo, tem até aquela imagem clássica da câmera na ponta da arma, deliberadamente inspirada pelos jogos de videogame em primeira pessoa. No final - inexplicavelmente pra quem não é familiarizado com a lógica ultraliberal do Daesh -, surge uma paisagem urbana hi tech, tipo Dubai.

Os ataques terroristas, como os que vi no bairro em que vivia em 13 de novembro de 2015, em Paris, fazem obviamente parte dessa mesma lógica. Digamos que os vídeos e as revistas são a propaganda direta ao público consumidor; já os atentados têm uma dupla função: são a propaganda institucional - que tem o efeito de médio prazo de reforçar as filas de combate - e, paralelamente, o único instrumento diplomático que esse tipo de pseudo-Estado consegue utilizar à luz do dia. Quando uma grande derrota militar abala a credibilidade de seu projeto expansionista, o "califado" dispara esse tipo de ação portátil, que não depende de grande aparato militar, mas tem um impacto simbólico tão profundo que influencia a tomada de decisões diplomáticas.

Pouca gente lembra mas, naquele mesmo dia, o Daesh sofreu um enorme revés simbólico e estratégico, com a perda da cidade de Sinjar, no Iraque, para os peshmergas (forças ligadas ao partido democrático do Curdistão Iraquiano, apoiadas pelos Estados Unidos). Sinjar era duplamente importante: do ponto de vista estratégico, funcionava como rota de ligação entre as duas principais cidades sob controle total da organização - Mossul, no Iraque; e Raqqa, na Síria. Por ali, passavam combatentes, armamentos e muito petróleo. Do ponto de vista simbólico, foi em Sinjar que o Estado Islâmico exerceu toda sua crueldade. Durante a tomada da cidade, mais de cinco mil homens de minorias curda e yazidi foram assassinados. Mulheres e meninas de cinco, seis anos, foram reduzidas à escravidão sexual.

Diante de tamanha derrota, a sobrevivência do "califado" e de sua capacidade de recrutamento, exigia um choque propagandístico de diplomacia não-convencional. Naquela mesma noite, noticiários do mundo inteiro falariam dos atentados contra o Bataclan, o Petit Cambodge, dos bares nos arredores do Canal St. Martin, o coração boêmio da Cidade Luz. Mas claro que a diplomacia convencional é muito mais efetiva e cotidiana do que a dos atentados. Por baixo dos panos, o Daesh negocia com outros governos, obviamente. Afinal de contas, sempre se disse que ele se financia pelo tráfico de petróleo - eu, pelo menos, nunca conheci ninguém que comprou uma latinha de petróleo na padaria.

A Turquia, por exemplo, tem uma relação no mínimo dúbia com o grupo. A cerradíssima fronteira com a Síria, que sempre travou a circulação da população curda, virou uma peneira desde 2014, quando os islamitas começaram a colonizar a região. Armas, óleo e combatentes wahabistas circulam por ali à vontade. Wahabistas, aliás, é um termo importante. O Ocidente, de maneira deliberadamente preconceituosa, e a grande mídia brasileira, creio que por pura ignorância, se acostumaram a chamar os wahabistas de jihadistas. Mas jihadista quer dizer muito pouco. Se tomarmos a palavra jihad ao pé da letra, todo mundo que acorda de manhã e dorme de noite, todo mundo que enfrenta o dia a dia, é um jihadista. Jihad é a luta do quotidiano.

A particularidade de organizações sunitas violentas, como o Daesh e a Al-Qaeda (além, claro, de ter recebido muito apoio de Estados ocidentais interessados em uma mão forte no Oriente Médio pra garantir o fluxo petrolífero) é seguirem a doutrina wahabista. A criadora e grande promotora mundial desse ramo fundamentalista do islã é a petromonarquia saudita, principal compradora de armas e grande aliada do Ocidente na região. Absolutamente todos os combatentes europeus do Daesh se radicalizaram em mesquitas financiadas pelos sauditas. Ou seja, os grandes pontos de sustentação do grupo são os aliados do Ocidente: Arábia Saudita, pelo lado ideológico, e Turquia, pelo lado financeiro e logístico.

Mas a mais "surpreendente" das ligações externas do Daesh é o fato de que toda a comunicação do grupo passa pela Europa. Todos os vídeos, comunicações, tuítes, decapitações, tudo que o grupo publica passa pelos satélites de duas empresas, a francesa Eutelsat e a britânica Avanti. E a internet por satélite é muito facilmente rastreável, já que as antenas simplesmente não funcionam sem coordenadas precisas de GPS. Ou seja, duas empresas europeias podem causar um apagão em toda a comunicação do Daesh e, basicamente, anular o grupo, como denunciou a revista alemã Der Spiegel, no fim de 2015.

Por que não fazem? Porque isso seria anticapitalista: o lançamento de satélites é caro e a vida útil dos aparelhos não ultrapassa dez anos. Uma vez que eles estão em órbita, é preciso vender rapidamente os pacotes de dados para que eles se paguem. O problema é que a cobertura mundial de internet wireless é grande demais, falta mercado. O mercado de maior demanda hoje é justamente nos territórios ocupados pelo Daesh, em que a infra-estrutura de rede foi reduzida a zero. No fundo, o capitalismo financeiro global e o Daesh estão no mesmo jogo ultraliberal, cujas tintas políticas têm diferentes matizes de fascismo. Muda a peça, o produto anunciado e o grau de violência do anúncio, mas a lógica de substituição da razão pela emoção como maneira de vender um produto - seja o wahabismo, seja a cerveja - é a mesma desde Goebbels. 
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