Temer fingiu que somos o país do futuro. Só quem vê futuro no Brasil pós-golpe é o capital improdutivo. Mas talvez esse seja o público alvo de Temer. Fingir que está tudo bem, quando todo mundo vê que não está, significa relegar a democracia ao papel secundário de administradora de aparências.
Foto-ilustração de Joana Brasileiro sobre imagens de Ricardo Stuckert/ Instituto Lula; Beto Barata/PR/fotospublicas
O discurso de Michel Temer na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas na terça-feira (20) mereceria um estudo profundo. Não vale a pena discorrer longamente sobre a incoerência estrutural do conteúdo, porque isso já foi muito bem feito pela Helena Borges no Intercept. Basta dizer que ele tenta vender a ideia de que tudo está normal e o Brasil cumpre, internacionalmente, o mesmo programa que nos colocou no mapa da diplomacia durante os governos petistas.
Michel Temer parece
querer recuperar a credibilidade política na esfera internacional à la
Pollyana, fingindo que tudo vai bem. Suponhamos (apenas suponhamos) que o autor
deste texto refutasse a tese do golpe, pensasse que o Judiciário brasileiro faz
um trabalho isento de combate à corrupção, que a imprensa é livre e
comprometida com a imparcialidade. Ainda assim, se o mundo suspeita que há algo
de podre no reino da Dinamarca, cabe aos dinamarqueses se explicar. E pesam
muito mais suspeitas sobre o Brasil do pós-golpe que sobre a Dinamarca
shakesperiana.
Quem falou? Pra ficar na França, Le Monde, Le Figaro (diários conservadores franceses viraram
leitura trotskista perto da grande mídia brasileira), Libération, membros
diversos do Legislativo francês e daí por diante. Até o New York TimesTemer trata a ONU como extensão do quintal midiático onde os golpistas amarraram seu cavalinho de Troia.
olha de
rabo de olho para esse "impeachment". Na China, ele fingiu que tudo
andava normal no G20, fez cara de paisagem para a foto oficial, como se não tivesse sido
colocado de canto, como mau aluno de escola sem partido.

Diante de delegações
que deixavam a sala em denúncia a sua ilegitimidade, Michel Temer subiu à
Tribuna da ONU para falar do Brasil atual como se estivéssemos na era Lula,
quando os problemas mais graves se passavam porta afora e o mundo via nossa
jovem democracia com esperança. Dizer hoje que, "aí na terra de vocês, tem
guerra, xenofobia, nacionalismo 'exacerbado' (como se nacionalismo "contido"
não fosse uma dinamite com o pavio apagado)" e posar como um farol de
distribuição de renda, acesso à habitação, educação inclusiva e relações
externas altivas é tratar a classe política internacional como uma extensão do
quintal midiático onde os golpistas amarraram seu cavalinho de Troia. Em casa,
ele pode falar o que quiser, que "umas 40 pessoas" querem vê-lo pelas
costas.
Lá fora, a coisa muda.
O mundo político não vê o Brasil com os olhos esperançosos da década passada.
Basta reparar no grau de hesitação de chefes de Estado de todo o planeta em
reconhecer isso que a gente está obrigado a chamar de "governo". Só quem
vê futuro no Brasil pós-golpe é o mais distópico dos setores econômicos: o
capital improdutivo. Mas talvez esse seja o público alvo de Temer quando trata
a mais alta esfera da política mundial como um palco em que se encena a
normalidade. Fingir que está tudo bem, quando todo mundo vê que não está,
significa relegar a democracia ao papel secundário de administradora de
aparências. E assim, sinalizar ao "mercado" (que opera por meio de
aparências esotéricas de normalidade) que não há razão para se preocupar com a
instabilidade gerada pela pluralidade de opiniões.
Não é novidade. Essa
hipocrisia se aproxima do modus operandi dos
gerentes Rigor fiscal é impopular? Para um corpo político que só se vê como gerente de interesses privados, o povo tanto faz.
(chamar de chefes de Estado é exagero) da União Europeia que, contra
toda e qualquer lucidez, seguem impondo cinicamente, por meio de medidas de
austeridade, o
ônus da crise financeira aos mais pobres. Só os bancos,
responsáveis pela quebra da economia global, se beneficiam dessa política. E a
população em geral é abertamente contrária. Mas para um corpo político que não
se vê como mais do que administrador eleito de interesses privados, tanto faz o
que pensa a população em geral. Bom exemplo disso é a
maneira como a Comissão Europeia esmagou a tentativa da Grécia sob o Syriza de
adotar medidas anticíclicas como forma de assegurar, no médio prazo, a
renegociação e eventual pagamento de sua dívida astronômica. Nas excelentes
palestras que faz pelo Velho Continente para promover seu Movimento pela
Democracia na Europa (DiEM25), o ex-ministro grego das Finanças Yanis
Varoufakis conta algumas anedotas elucidativas.

Em sua primeira
reunião com a Troika de credores da Grécia (FMI, Banco Mundial e Comissão
Europeia), Varoufakis fez uma proposta moderada que, como ele mesmo diz,
"qualquer advogado de falências de Wall Street faria". Ele sugeriu duas
medidas para evitar um novo empréstimo, cujas contrapartidas draconianas
reduziriam o PIB do país em 28% e obviamente impediriam que a dívida fosse
quitada: a reestruturação das formas e prazos de pagamento e a retomada do
investimento produtivo, de onde viria a renda para reembolsar os credores.
Varoufakis construiu a
argumentação de forma igualmente moderada: "Existe um programa que foi
assinado pelo governo anterior e sei que um Estado exige continuidade. Um novo
governo não pode simplesmente chegar e começar do zero [viu, seu Michel
Temer?]. Mas o povo grego nos deu o mandato justamente para contestar este
programa. Então, temos dois conceitos que se chocam de frente aqui:
continuidade e democracia. Nessas circunstâncias, o que podemos fazer? Encontrar
um campo comum para as negociações. Em outras palavras, fazer concessões".
Antes de terminar a frase, o chefe das Finanças gregas foi interrompido pelo
seu colega alemão, Wolfgang Schauble, que soltou a seguinte pérola: "Não
podemos permitir que votos mudem um programa econômico".
O golpista busca lugar à mesa global. Não pela porta da frente, mas pelos fundos - o que não é novidade para Temer.
Quer dizer, não
podemos permitir que algo tão insignificante quanto a democracia contrarie
interesses do capital financeiro. Como diz o próprio Varoufakis, eles querem
tirar o "demos" (povo) da democracia. Em outra ocasião, tomando café
depois de longas horas de reunião, o ministro grego ouviu da chefona do FMI,
Christine Lagarde: "Você tem razão, nosso programa vai agravar a crise
grega e não vai recuperar a capacidade de investimento do país. Mas você tem
que levar em conta que investimos muito capital político para convencer todo
mundo a aceitar a austeridade fiscal".
Talvez, com seu
discurso de normalidade, o eterno interino tente se aproximar deste grau de
hipocrisia para encontrar seu lugar à mesa dos players globais. Não pela porta da frente, como fizemos nos bons
tempos de Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia, mas pelos fundos - o que, cá entre
nós, não é novidade para Michel Temer. Ele se ausenta de oferecer a resposta
política que a desconfiança internacional exige porque sabe que seu único
lastro com o poder - e quiçá com a própria política - é o capital. Assim, Temer
faz uma mímese esvaziada do Brasil que encantou o planeta nos últimos anos. Por
trás, oferece ao capital improdutivo exatamente o que ele quer: a política como
farsa necessária à primazia de interesses privados.
Esse tipo de
esquizofrenia é muito comum a quem chega ao poder pela via golpista. O problema
é que a doença virou epidemia em 2008, quando o capital improdutivo iniciou sua
ofensiva para sequestrar as esferas executivas da política. E, como se vê pela
triste deriva europeia, não são só governos ilegítimos que sofrem dela.
A nossa única arma
contra essa ofensiva da distopia, da ideia de que apenas uma parte privilegiada
da sociedade tem direito a ter direitos, é a utopia da distribuição, tanto de
poder quanto de renda. Como bem percebeu Varoufakis, é reinserir o demos na
democracia, em todos os lugares, em todas as esferas. Entramos em uma luta pelo
direito à participação. O discurso de Temer, por mais absurdo que pareça,
mostra que este governo está consciente de que a guerra pelo controle da
política está em curso. Eles escolheram um lado e estão tentando divorciar
poder e povo. E nós? Estamos dispostos a radicalizar a democracia?
Matéria publicada pelos Jornalistas Livres, a 22 de setembro de 2016
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