24 outubro, 2016

O que pensava Flávio Renegado quando lançou seu primeiro disco

Renegado, em foto de Bárbara Dutra

"Nunca tive muito contato com meu pai", conta o rapper Renegado, constatando em si próprio a realidade de milhões de crianças de periferia. "Nas vezes que ele aparecia, sempre aparecia malandrão, né? Chapado e com o Bezerra da Silva debaixo do braço". A mãe, que "limpou muito chão de playboy" para criar os filhos, era solteira aos 21 anos e já alimentava duas bocas. Ao seu redor, surgiam exemplos e mais exemplos do que há de pior: bêbados, bandidos, traficantes, armas. O roteiro é a tragédia clássica do negro pobre. Mas, aos 27 anos, esse mineiro da comunidade Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte, contraria as estatísticas: "Não tenho nenhuma perfuração de bala no corpo, nenhuma cadeia e tenho uma perspectiva de vida palpável na música", despeja o rapper.

Perspectiva é modéstia e rapper é pouco para defini-lo. Com sua mistura indiscriminada de samba, reggae, ragga, MPB e o que mais lhe vier à cabeça, Renegado é hoje a maior revelação da música de Minas: ganhou dois prêmios Hutuz em 2008 (revelação e melhor site), lançou um disco independente (Do Oiapoque a Nova York) e outro demo, gravou em Cuba com Cubanito e Alayo, virou garoto-propaganda do programa Vozes do Morro do Governo Estadual, flertou com a MPB de Aline Calixto e já é figurinha carimbada dentro do movimento hip hop. Por fora, é ativista social e presidente da ONG Negros da Unidade Consciente.

"Eu não tenho gravadora, não tenho grandes investidores, não tenho nada do tipo. Tenho é muita vontade de trabalhar e pessoas que acreditam no mesmo sonho que eu". Apoiado pelos "parceiros de caminhada", Renegado quer ir além - e não só na música. O que ele deseja mesmo é um país mais justo, mais igualitário e com mais oportunidades. E o rap é um dos caminhos para isso porque é a "música da verdade. Pra quem tem verdade a ser transmitida, ele é um mecanismo de libertação". Se o papo lhe parece sério demais até aqui, meio sisudo até, é porque você não conhece o cara ainda: Renegado é todo sorridente. "A gente escuta: 'Tem que ser homem mau pra vencer essa guerra'. Muito pelo contrário, mau é quem nos oprimiu até agora. Nós estamos aqui mostrando que não queremos viver em guerra; queremos alcançar a paz". Por isso, ele garante que sua música não carrega o peso de quem mora na periferia, mas a esperança de mudar. E tudo isso sem perder a ginga, o suíngue e o flow, como ele gosta de dizer. Com vocês, Renegado:


Reprodução da capa do CD "Do Oiapoque a Nova York"

Afroências: Você prefere ser chamado de rapper, cantor ou prefere não ser chamado de nada?
Renegado: (Risos) Mano, acho que eu sou músico, tá ligado? E, acima de tudo, rap é a música que eu escolhi cantar. Hoje no meu trabalho, o rap é uma opção de música. Não é a única alternativa; meu trabalho dialoga o tempo inteiro com várias vertentes da música. Busco trazer isso pra dentro do rap. Eu me identifico muito com o rap porque ele é a música da verdade. Pra quem tem verdade a ser transmitida, ele é um mecanismo de libertação.

Renegado era apelido na quebrada ou é nome artístico?
Renegado: A princípio, foi um apelido que eu ganhei - eu não curtia muito, não. Minha mãe sempre foi muito sistemática com a nossa criação em casa, ela nunca gostou muito desse esquema de ter vulgo. Depois de um tempo, comecei a refletir melhor sobre esse nome e percebi que várias pessoas da quebrada são renegadas: às vezes, não temos condição de ter uma casa legal, de ter saneamento básico, de ter uma condição de vida digna de dizer que somos cidadãos, tá ligado? São bens comuns de sobrevivência que foram negados e re-negados. Por isso que eu adotei esse nome; para poder falar que, mesmo com todo o descaso e toda a revolta, a opção que nós temos não é portar arma como forma de vida. E é uma palavra forte, né, mano?

E ela tem o "nego" no meio, né? Todo mundo fala negação, mas ninguém fala brancação...
Renegado: É... Negação, mas não brancação (risos). Boa! Essa daí eu não tinha pensado, essa foi ótima. E é louco porque, ao mesmo tempo em que é uma palavra que traz essa vibe de ser algo negativo...

Outra palavra com nego...
Renegado: Tem várias! Se a gente for levantar assim, tipo... Denegrir, mano. Denegrir é f... Vamos denegrir tudo pra ver se fica um pouquinho mais preto. Mas então, essa parada do nome: também tem uma força, tem uma musicalidade dentro dele, que me atraiu muito.


"Bênção", de Renegado

A Dona Regina (mãe) acabou aceitando o vulgo?
Renegado: Ah, hoje ela já fala. Quando ela atende o telefone lá em casa, ela diz: "Aqui quem está falando é a mãe do Renegado!" (risos). Ela já se identifica. E a parada é a seguinte: nessa sociedade em que a gente vive, todo mundo tem que ser bonzinho o tempo inteiro, tem que ser heroi, cara. A gente tem que trabalhar um pouco a questão do anti-heroi, da contracultura... Até pra gente poder refletir um pouco, sair do lugar. Se a gente fica aceitando tudo o que está pronto e acabado, a gente não muda, né? Vamos ver se os renegados acordam aí pra poder escrever a própria história, né, irmão? Porque o tempo inteiro fica essa parada de gente dizer que nós somos descendentes de escravos... Meu ancestral não foi escravo, ele foi escravizado; é diferente.

Ninguém nasce escravo, né?
Renegado: Ninguém nasce escravo, como ninguém nasce Madre Tereza de Calcutá e ninguém nasce Fernandinho Beiramar, tá ligado? É tudo uma questão de sensibilidade e referencial. Nosso referencial, o tempo inteiro, é o cara da quebrada portando fuzil, o pai alcoólatra. Esses são os referenciais do nosso povo. Então, a gente tem que mudar um pouco essa perspectiva. Quando um moleque na quebrada me vê fazendo um comercial ou um show, ele fala: "Pô, aquele mano da quebrada está lá na televisão". E fala pra mim: "Continua aí, o trabalho tá legal". Ele começa a ter ourtas referências sendo construídas.

Você mistura samba, rap, reggae, tem um site muito louco, de alta tecnologia, não tem qualquer barreira. De onde vem essa força pra desbravar culturas?
Renegado: A primeira coisa que a gente tem que ter é acreditar que sempre é possível sonhar. Se a gente acha que tudo é difícil... Tudo é difícil mesmo, mas se a gente entrar no jogo achando que já perdeu, melhor nem entrar em campo. Eu não tenho gravadora, não tenho grandes investidores, não tenho nada do tipo. Tenho é muita vontade de trabalhar e pessoas que acreditam no mesmo sonho que eu. Então, eu vou colhendo parceiros no decorrer da caminhada e, com isso, o trabalho vai se construindo e se consolidando também. Nessas, tivemos em 2008 a felicidade de ganhar o prêmio de melhor site de hip hop no Hutuz... Também ganhei o prêmio de Rapper Revelação em 2008. Então, saí de Belo Horizonte, ninguém me conhecia e já pude alcançar outro patamar. Hoje, nós estamos circulando o país, fazendo show em Brasília, Goiânia, Cuiabá, São Paulo, Rio, Campinas... O trabalho está se sustentando. E o tempo inteiro, a gente recebe palavras de "desincentivo": "Isso é difícil, isso não dá...". Esse pensamento nós temos que mudar. Eu não construí nenhuma fronteira, você construiu?

Não.
Renegado: Então, mano... Minha palavra de ordem é quebrar fronteiras e estabelecer diálogos.

Como foi seu primeiro contato com a música?
Renegado: Meu primeiro contato com cultura de uma forma geral foi quando eu entrei num grupo de capoeira lá na minha comunidade. Fiquei nesse grupo durante cinco anos. Quando eu tinha 13 anos de idade, eu estava na casa de um amigo e estávamos nós dois ouvindo uma rádio comunitária que tocou "Fim de semana no parque", dos Racionais MCs; e "Corpo fechado", de Thaíde e DJ Hum, na sequência. Aí eu falei: "É essa parada que eu quero fazer". Me identifiquei na hora. Mas eu sempre tive contato com a música. Minha mãe ouvia aquelas rádios que tocam música romântica no final da noite. Era Roberto Carlos, Tim Maia... E gravava num gravador que a gente tinha em casa. Meu pai sempre foi muito ausente, nunca tive muito contato com ele, mas nas vezes que ele aparecia, sempre aparecia malandrão, né? Chapado e com o Bezerra da Silva debaixo do braço (meio riso). Essas coisas que foram me pautando pra que, quando eu tive oportunidade de conhecer o rap, eu pudesse aplicar tudo isso dentro da minha música.

Então sua formação foi pelo rádio?
Renegado: Sim. A vida inteira, né, mano? E hoje o meu som toca na rádio também. Então, eu tô sendo referencial pra outros moleques também.

E como é que é essa história de Nova York?
Renegado: Quando eu fui fazer o disco, eu quis trazer a questão da mistura e do diálogo pra dentro do trabalho. Pô, nós temos aqui um rico histórico musical nacional e, naquele momento, o rap nacional ainda não tinha aprendido a se tornar um rap brasileiro. Eu resolvi fazer mistura; e peguei a referência do rap como a música pop do mundo - Nova York como pilar dessa globalização. Eu pensei: "Vou falar do Brasil aos Estados Unidos"; e escolhi esse nome, mais brasileiro e mais world music possível: Do Oiapoque a Nova York.


Conexão Alto Vera Cruz/Havana, no Estúdio Show Livre


Entre Oiapoque e Nova York tem Havana, né (uma das músicas de Renegado, chamada Conexão Alto Vera Cruz/Havana, tem participação de músicos cubanos)?
Renegado: Tem América Latina inteira, irmão.

Falo especificamente da música Conexão Alto Vera Cruz/Havana: começa com batida de terreiro, cita o candomblé, cita a santeria. Quer dizer, é uma música panafricanista. A mensagem que ela me passa é que todos os negros são filhos de uma mesma mãe África.
Renegado: Sim. Irmão, eu acho que a África é o grande berço de tudo, tá ligado? Quando eu comecei a produzir o disco, ouvi muita coisa do Senegal, do Quênia. Queria uma referência de por onde transitar com o trabalho. Quando a gente busca nossas raízes, a gente tem perspectiva de enxergar o futuro. Quando eu entendi essa parada, falei: "Opa, 'pera aí'. Vamos lá na África, vamos em Nova York, vamos entrar em conexão com tudo que existe". Isso abriu o diálogo. E raiz é isso. Fiz essa música em 2004, quando fui a Cuba. E ela continua atual. Acho que se a gente ouvir daqui a cinco anos, ela vai continuar atual.

Como foi a viagem para Cuba?
Renegado: Ficamos 15 dias lá. Nossa, mano, é uma ilha mágica. Você vê o povo sobrevivendo em condições precárias, por causa do embargo e da própria ditadura. Claro que a revolução é bacana, mas ditadura tem suas desvantagens. Mas o povo é igual ao povo brasileiro! Eu fiquei em Vedado (bairro de Havana). Eu andava Vedado, achei que estava no Alto Vera Cruz. Tranquilo: povo rindo, a vibe boa, mulheres bonitas, andando com a auto-estima em alta. Que da hora aquele lugar! Lá não tem essa questão de preconceito racial igual ao que tem aqui: o pessoal lá é cubano e tá tudo certo. Não tem essa vibe, tudo é energia; tranquilidade.

Por falar em preconceito racial, o candomblé tem sido muito judiado, principalmente por algumas igrejas evangélicas que têm, inclusive, convertido muitos negros. Você é um cara que fala livremente do candomblé na sua música. Esse é um caminho pra salvar essa parte cultura negra de tanto preconceito?
Renegado: A base de tudo no mundo é a educação. Enquanto a educação no nosso país for ineficiente, nós vamos ter esse retrocesso no sentido de respeitar outras etnias, outras crenças e os outros indivíduos da nossa sociedade. O nosso povo aceita essa coisa das outras religiões serem impostas porque nossa história foi queimada. Ela não foi estudada quando a gente era criança e continua não sendo estudada agora, com a gente um pouco maior. Hoje, nós temos construções que ajudam a melhorar esse processo, como a lei que (obriga) o estudo da história africana nas escolas. Então, daqui a pouco, nós vamos ter uma outra mentalidade sendo construída em torno das religiões de matriz africana - o povo vai começar a entender a nossa história. Porque o povo que não tem história não tem auto-estima, não tem conhecimento, não tem perspectiva. É disso que nosso povo está precisando: conhecer quem são nossos ancestrais e entender para onde o mundo está nos guiando. Acho que aí a gente vai ter a tranquilidade para respeitar a religião e a cultura do outro sem precisar impor a nossa. A fase de colonização já passou, mas a gente ainda vive ela quando liga a televisão ou quando vai a um culto religioso. Mas com o tempo, isso tudo vai ser vencido.

Foi com essa ideia na cabeça que você criou a ONG Negros da Unidade Consciente?
Renegado: Foi com a ideia de ter perspectiva de vida e atuação na comunidade... Tudo isso sem perder o flow, né (risos)? Porque isso nós temos que ter o tempo inteiro: nossa ginga e o nosso suíngue.

Por falar em não perder o flow, você é um rapper que não tem vergonha de sorrir - quem vê a capa do seu disco demo não fala que é rap. Cara feia no rap é coisa do passado?
Renegado: Não vou nem dizer que é coisa do passado. Só acho que o rap está passando por uma fase de transição. A gente escuta: "Tem que lutar, tem que ser homem mau pra vencer essa guerra". Muito pelo contrário, mau é quem nos oprimiu até agora. Nós estamos aqui mostrando que não queremos viver em guerra; queremos alcançar a paz. Por isso, mano, a gente tem que ter sorriso, tem que ter verdade, tem que ter tranquilidade pra poder guiar esse momento. Acho que a minha música não tem o peso de quem mora na periferia; ela tem é a perspectiva de melhora pra quem mora na periferia. Se a gente ficar na bad trip o tempo inteiro, é complicado demais. Nosso povo é batalhador, é guerreiro, mas se diverte também: faz música boa, joga muito futebol, faz samba, tá ligado? É nossa história, é nossa raiz. Não tem como a gente negar isso daí.

Você já teve bastante contato com a mídia?
Renegado: Tive sim. E vou te falar que o meu trabalho é muito bem aceito pela mídia, principalmente a impressa. O pessoal tem uma atenção muito grande, observa e respeita muito. Eu sou muito feliz por isso. Mas eu acho que ainda é pouco. Temos que ter quatro Manos & Minas (programa da TV Cultura), temos que ter vários jornais e várias revistas para divulgar os nossos feitos. E acho que a gente tem que ocupar mesmo a mídia porque são mais de 60 milhões de negros que assistem a TV no domingo à tarde, tá ligado? A gente tem que estar lá pro cara poder olhar e falar: "Opa, olha a gente lá!".


Renegado canta "Do Oiapoque a Nova York" no Manos & Minas
Então dá para fazer da mídia uma aliada?
Renegado: Eu não diria aliada. A mídia é uma ferramenta que a gente precisa aprender a utilizar, como utiliza hoje Twitter, Facebook, Orkut, email.

Falando especificamente desse show de sexta-feira, o que você vai apresentar para o público de São Paulo?
Renegado: Vou apresentar o repertório do disco, com algumas músicas inéditas também e algumas releituras - tô começando a trazer isso pra dentro do universo do rap. Acho que está na hora de a gente estabelecer um diálogo maior com a música brasileira. Então, vou cantar Tim Maia, Chico Buarque e vou ter essa participação maravilhosa do Marcelinho da Lua.

Quando você era moleque lá no Alto Vera Cruz, qual era seu maior sonho?
Renegado: (Silêncio) Essa é boa (risos). Eu ainda sonho demais quando eu estou lá no Alto Vera Cruz, tá ligado? Acho que ali eu sou moleque. Mas uma coisa que eu sempre quis fazer foi transformar aquela comunidade de verdade. Hoje a gente já conseguiu várias obras de orçamento participativo, estamos abrindo as ruas na comunidade, canalizando; estamos mudando o cotidiano das pessoas que estão lá. O meu sonho era ser referência na minha comunidade. Acho que até comecei a extrapolar, começamos a quebrar as fronteiras do Alto Vera Cruz e ir pra outras - pra cidade, pro estado...

Pra BH, pro Brasil, pro Oiapoque, pra Nova York?
Renegado: (Risos) Por exemplo, né, mano? A próxima tentativa é isso. Acho que é isso, bicho, acho que a cada dia o sonho se renova. E isso é o mais importante: a gente sempre tem que sonhar para alcançar um outro sonho.
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1 afroências:

Tiago Ferreira da Silva disse...

É, mano, tem que ser malandro pra ficar de pé e fazer gol!

Bem loka essa entrevista com o Renegado. Até então, não o conhecia. Durante a leitura escutei o som que tu disponibilizou aê.

Concordo positivamente com o argumento do mano sobre referência. Vejo muita gente 'renegando' essa necessidade. Acham que pra ser revolucionário deve ser diferente de todo mundo, logo 'renega' o conhecimento de outras pessoas que estão no mesmo patamar.

E acho que esse lance da agressividade do rap é como ele disse, aos poucos pode se esvair. Basta fazer uma análise dos Racionais. Quando vc imaginaria que um grupo que cantou "Mulheres Vulgares" posteriormente escreveria "Mulher Elétrica"? É uma transição, da qual eles fizeram parte e que o Renegado já captou. Bem loko isso!

Mesmo a atualidade: tem muita coisa boa e que vale a pena sendo divulgado.

Ah, da hora tua captação do nome: 'renegado' com 'nego' no meio (nada passa batido pra vc né??!).

ô, e da hora uma seção de entrevista na tua página. Geralmente elas são enriquecedoras, trazem muitas informações bacanas - que nem essa!

Salve mano, um abraço!!! (já escrevi demais no comentário!)

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