Cartoon contemporâneo à Revolução Francesa mostra o Terceiro Estado (proletariado) carregando a nobreza e o clero nas costas. Na legenda: "Resta esperar que este jogo termine logo"
Para começar a
falar de desigualdade, é preciso determinar honestamente qual nível de
desigualdade estamos dispostos a tolerar. Em termos bem genéricos e
reducionistas, o nível de tolerância com a desigualdade econômica me parece ser
a diferença teórica fundamental entre a esquerda social-democrata e a
revolucionária. Os dois lados concordam que a desigualdade é estruturante do
capitalismo e está inscrita na sua história. Ou seja, nenhuma das duas
correntes esquematicamente hegemônicas da esquerda acredita que as
desigualdades possam ser eliminadas dentro de uma sociedade capitalista. Isso
nos coloca uma pergunta, anterior à definição da estratégia de combate à
desigualdade, seja ela qual for: no nosso horizonte utópico, somos pela redução
da desigualdade ou pela eliminação das estruturas de reprodução sistêmica da
desigualdade?
URSS, Angela Davis e a síndrome da moldura estreita
O sistema está
em colapso. Mesmo assim, como diz o filósofo esloveno Slavoj Zizek no
documentário Zizek! (2005) da
diretora canadense Astra Taylor, hoje imaginamos com mais facilidade o fim da
vida na Terra do que o fim do capitalismo. Do lado da esquerda, isso pode ter a
ver com o trauma da queda do muro de Berlim: talvez, tenhamos aderido
facilmente ao discurso conservador que assimilava o fim da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas ao fim do próprio socialismo. Como se tivéssemos engolido,
por osmose, a ideia do fim da história da escola de Chicago (por mais falha que
fosse do ponto de vista conceitual) e aceitado passivamente a redução do nosso
campo político à função de porteiro do edifício capitalista. Seríamos os
administradores preferenciais desta estrutura decadente e lutaríamos para que
mais gente conseguisse alugar seus quartinhos, abandonando completamente a
ideia de derrubar o prédio inteiro e usar o terreno baldio para abrigar todo
mundo.
Em outras
palavras, deixamos de lado a perspectiva revolucionária – nosso horizonte utópico – para aceitar, com pragmatismo irracional, a ideia de
que a reforma perene gradualmente transformaria o capitalismo em algo mais
humano. A ruptura saiu de nosso ethos político
e passamos a ver a história (ou pós-história em nossa sanha fukuyamesca) através
de uma lente positivista, como um processo progressivo contínuo. Para piorar,
ao aceitar a ideologia que assimilava a queda do muro ao fim da luta de classes,
parecemos ter passivamente nos investido, enquanto campo político, de uma culpa
católica pelo que houve de pior no stalinismo. Como se, humilhados pela derrota de uma
primeira experiência contemporânea inspirada em nossa perspectiva utópica, houvéssemos
encampado a série de analogias banais e empiricamente insustentáveis da Hannah Arendt: Stalinismo
= União Soviética = Socialismo = Nazismo.
A aceitação desta
radical redução epistemológica, deste logocídio
dos conceitos históricos relacionados à construção política da esquerda, nos
torna presa fácil da propaganda neoliberal mais rasteira. Ficamos obrigados a
reagir, de forma também propagandista, dentro de um terreno lógico
propositadamente esvaziado de sentido. Ao invés de defender, de maneira crítica
e dialética, os avanços direta ou indiretamente decorridos da Revolução Russa –
desde a humanização panfletária da exploração capitalista sob Bretton Woods e o
Plano Marshall até a descolonização maciça da África negra pela via
revolucionária –, passamos a disputar o texto que ilustra a lápide da nossa
utopia. Talvez o fato de o campo progressista ter encampado a fragilíssima tese
do fim da história (sequer na perspectiva hegeliana, mas de Francis Fukuyama mesmo) seja
a grande vitória ideológica da direita pós-1989.
Ainda que a
abundância de suposições confira a estes últimos parágrafos um tom de psicologia
social de botequim, é difícil não enxergar a nítida dificuldade do campo da esquerda
hegemônica em se desamarrar do que é lícito e possível dentro da lógica da
social-democracia representativa burguesa. É emblemático que, em seu livro mais
recente (Freedom is a constant struggle: Ferguson,
Palestine and the foundations of a Movement), a filósofa, professora e
ativista Angela Y. Davis reflita exaustivamente sobre a denominação “Movimento
pelos direitos civis” para se referir à ebulição social promovida pelos negros
estadunidenses nos anos 60. Em determinado trecho do livro, depois de defender
o Programa de Dez Pontos do Partido dos Panteras Negras
como principal resumo das demandas populares daquela era, Davis comenta o
“desenvolvimento dialético do movimento de libertação negra”: “Existe este
movimento pela liberdade e, depois, uma tentativa de estreitá-lo para que caiba
em uma moldura muito menor, a moldura dos direitos civis. Não que direitos
civis não sejam imensamente importantes, mas liberdade é algo muito mais
expansivo que direitos civis” (DAVIS, 2016:71-2).
Hoje, parece que
toda nossa construção ideológica enquanto campo político sofre desta “síndrome
de encolhimento da moldura”. Aceitamos a existência de um muro imaginário que
estreita a tal ponto nossa visão que não enxergamos mais utopia no horizonte. E
não é apenas do ponto de vista da ação. Via de regra, desde que colapsou a
União Soviética, não nos atrevemos sequer a pensar
em termos revolucionários.
É um paradoxo
terrível: pactuamos a desigualdade como empecilho central ao desenvolvimento
humano; aceitamos que, dentro deste sistema político e econômico, não existe perspectiva
de eliminação das desigualdades; mas não topamos discutir a derrubada do
sistema, porque a desestruturação de seus preceitos básicos está fora da
moldura artificial que nos foi imposta. Aceitamos a moldura por uma razão
exógena, moralista, que é a resignação dos derrotados numa batalha histórica pela
hegemonia política. Como se, com a queda do Muro de Berlim, assumíssemos uma
dívida sagrada com a humanidade, que só pode ser paga com um voto de silêncio
ideológico. Nosso medo de destruir a moldura – hoje, gravemente danificada,
não por ação nossa, mas pela insustentabilidade inerente ao capitalismo –
nos leva a optar por eliminar de nosso vocabulário político a ideia de acabar
com todas as desigualdades. Enquanto a base da pirâmide afunda sob uma ofensiva
classista do topo e a desigualdade explode a níveis genocidários, naturalizamos
a disparidade de gênero, raça e classe ao defender “redução de desigualdades”. Tornamo-nos,
nós também, logocidas disputando uma mimese publicitária de nossas bandeiras
históricas, quando deveríamos nos dedicar a encontrar caminhos intelectualmente
honestos de aprofundar a democracia, contra a qual o capitalismo em crise
declarou guerra aberta, e pautar à esquerda a implosão do sistema.
É necessário defender
claramente e agir para a promoção da diversidade e da inclusão política,
democrática e anticapitalista em todos os níveis, como caminho de acabar com as
desigualdades, de todas as ordens. Além de me parecer que o combate inegociável
à desigualdade seja o valor fundamental que nos une sob a bandeira da esquerda,
acredito que temos a oportunidade histórica, oferecida pela crise sistêmica
corrente, de radicalizar essa luta. Talvez seja hora de idealizar outro
mecanismo de mediação primária das relações humanas, diferente do dinheiro.
Diante do colapso do inimigo, é fundamental formarmos o repertório ideológico
para dar novo sopro de vida à utopia anticapitalista.
Caso contrário, nos
sobrará, se muito, um cargo de gerência do pós-capitalismo distópico proposto
pela direita. E, como costuma dizer o ex-ministro das Finanças da Grécia, Yanis
Varoufakis, o épico apocalíptico Matrix parecerá
um documentário.
O mito de Adam Smith e o dinheiro como
sistema de opressão
Adam Smith
imaginou uma sociedade baseada na barganha quando escreveu, que “não é da
benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso
jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses” (SMITH,
1996:50). Lembrando a historinha: José assava pão, mas queria sapato. João
produzia sapatos, mas queria peixe. E Pedro pescava, mas queria pão.
Basicamente, para possibilitar essa troca de interesses desiguais entre iguais
(membros de uma mesma comunidade), criou-se o dinheiro. Verdade? Pouco
provável...
Antropólogos
como o intelectual orgânico do Occupy Wall Street, o anarquista David Graeber,
constataram que esse tipo de relação de troca pautada na equivalência simbólica
de mercadorias diversas não existe em nenhuma sociedade pré-capitalista contemporânea.
E isso é indício de que essa sociedade provavelmente nunca existiu, já que a
troca nos termos smithianos pressupõe uma concepção mercadológica liberal
prévia.
Para viabilizar
seu comércio, os hipotéticos José, Pedro e João precisariam viver numa sociedade
em que já existissem: a) a operação mental de conversão da dívida em moeda; b)
a primazia do interesse particular do indivíduo sobre o interesse coletivo; c)
a radical especialização individual, que leva à atomização do trabalho, d) a existência
de uma lógica de troca que se sobreponha à lógica da doação de presentes (que,
como demonstra Graeber, a Antropologia constata ser muito mais comum nas relações
humanas).
Em outras
palavras, a sociedade pré-liberal descrita por Adam Smith não é pré-liberal:
ela já tem o dinheiro operando como mediador das relações sociais; já é uma
sociedade de mercado, o que é muito diferente de uma sociedade com mercados
(GRAEBER, 2011:21).
Graeber mostra
que o dinheiro não surge na relação entre vizinhos, amigos, aliados; neste tipo
de contexto comunitário, a ideia de retribuição é esdrúxula por si só. Entrego o
pão que sobra da minha refeição a meu vizinho não porque espero ganhar o
próximo sapato que ele produzir, mas simplesmente porque o pão sobrou. O
dinheiro, defende Graeber, é filho da desconfiança e da guerra.
Por exemplo, o
soldo em metal era fornecido pelo Império Romano aos soldados em províncias
longínquas por duas razões simples:
- Como propaganda
política dos imperadores e generais que imprimiam seus rostos na moeda;
- como forma de
manutenção simbólica da propriedade dos soldados em terra estrangeira; o dinheiro funcionava como título precatório de propriedade em solo romano. E, por
isso, uma vez posto em circulação, ganhava rapidamente caráter especulativo.
Se o mundo
antigo fosse uma sociedade de mercado, Adam Smith não teria escrito sobre a
barganha do padeiro com o sapateiro, mas sobre a crise do subprime em 76 a.C.,
quando a Gália tivesse tentado recuperar os títulos do Tesouro romano em
propriedade do exército ocupante. Quer dizer, o dinheiro nunca foi uma
commodity, ele sempre foi uma promessa de pagamento.
Ao desconstruir o
mito de Adam Smith, Graeber defende que a dívida nasce das relações hostis
entre desiguais (ocupante e ocupado, opressor e oprimido etc.) e se materializa
no dinheiro. A dívida é, portanto, anterior ao dinheiro, que funciona como
ferramenta de dominação e não como um mecanismo de abstração de valores,
encarregado de gerar equidade entre interesses díspares numa relação amistosa de
troca. Resumindo, para Graeber a origem da desigualdade econômica está no
próprio dinheiro enquanto ferramenta de geração de dependência.
Hoje, atalhando
irresponsavelmente a longa história do capitalismo, depois do
metalismo, da comodificação dos corpos humanos no ciclo da escravidão capitalista
transatlântica, do fim do lastro do dólar e, mais recentemente, da reação
classista das elites político-econômicas à crise de 2008, parece que temos a
volta da dívida a essa condição etérea, pré-monetária. Quando ficou claro o
caráter estrutural da última crise e a política foi sequestrada pelas elites
financeiras, abriram-se as portas para uma inédita radicalização do processo de
financeirização que, de acordo com o economista grego Costas Lapavitsas, restruturou
profundamente o modus operandi de
empresas, bancos e até da economia doméstica. Pesadas medidas de desarticulação
da produção e do trabalho deram protagonismo econômico sem precedentes ao
rentismo e ao extrativismo financeiro, gerando uma explosão de desigualdade de
renda.
Conforme o
capital concentra a maioria dos esforços em sua própria reprodução, levando a atividade produtiva e, consequentemente, o
emprego à quase obsolescência, o dinheiro fica cada vez mais abstrato. Se desde 1971 ele já havia
perdido o lastro em qualquer coisa física, com a radicalização do processo de
financeirização, o dinheiro (entendido como ferramenta de manutenção da
opressão por meio da geração de dívidas injustas entre desiguais) está nu: ele
é dívida pura, lastreada única e exclusivamente no valor moral que a gente
atribui à dívida. Quer dizer, hoje mais do que nunca, ele é um sistema de
crença. Uma dívida deve ser paga não por ser lógica ou justa, mas por ser moralmente
sagrada.
Como chegamos a
este ponto? Como chegamos ao ponto de achar moralmente aceitável, no mundo
inteiro, que o Haiti siga pagando com carne humana por sua independência
revolucionária? Ou que a dívida externa de países colonizados, expropriados
contínua e violentamente há cinco séculos, seja natural? Por que achamos normal que
a Grécia seja estrangulada por tentar renegociar sua dívida, se até a
da Alemanha nazista foi anistiada? Talvez tenha a ver com o fato de
que o dinheiro é dívida pura e, do ponto de vista da psicologia social, a
materialidade do capital esteja fragilizada. Como se o grande capital,
consciente da inédita intangibilidade do dinheiro, tenha constatado que qualquer
recuo com relação à moralidade da dívida possa abalar sua hegemonia sobre a
psicologia social. Afinal, uma vez que o capital perdeu sua racionalidade e nos
empurra ao colapso econômico, social, político e ambiental, sua única tábua de
sustentação é a irracionalidade da crença em sua inexorabilidade. O discurso
ideológico tatcheriano de que “não há alternativa” é o que sustenta o capitalismo
em sua fase mais irracional e suicida. Não à toa, do fundamentalismo religioso –
islâmico ou sua imagem espelhada cristã – ao negacionismo do aquecimento
global, as ideologias que mais crescem no mundo contemporâneo são
apocalípticas.
A parcela da esquerda
que abdica da ideia de ruptura, transforma suas bandeiras em logomarcas
eleitoreiras e se rende passivamente à filosofia do fim da história entra
também num ethos apocalíptico. E
pior, perde a oportunidade que emerge deste frame
da história da sacralização do mercado como fiador da aristocracia burguesa:
enfrentar a naturalidade da dívida imposta ideologicamente pelas eternas elites
aos eternos oprimidos. Enfrentar, enfim, a utilidade social dos cunhadores de
moeda, que abdicaram da parede ideológica construída pela materialização do
dinheiro e investem todo seu trabalho e capital político na manutenção da
teologia da dívida. Enfrentar ideologicamente, a ideia autoritária de que
nascemos devedores; essa ideia fundamental que estabelece a desigualdade como
natural. Radicalmente falando, enfrentar a desigualdade depende de enfrentar a
ideia de dívida e sua materialização, o dinheiro.
Mas como fazer
isso se abdicamos até da existência da luta de classes? Neste barco, estamos
sozinhos. Desde 2008, o inimigo mostrou sua verdadeira face e assumiu a
vanguarda da luta de classes. Os indícios estão no pano
de fundo de todas as decisões político-econômicas que se seguiram ao colapso do
sistema. Por mais diversas que fossem as justificativas ideológicas por trás
das chamadas medidas de austeridade fiscal (talvez “medidas de desintegração
social” fosse um nome mais adequado) aplicadas mundo afora no pós-2008, elas
efetivamente beneficiaram os perpetradores do caos ao reorientar a verba do
Estado ao topo da pirâmide e destruir (na prática e ideologicamente) o estado
de bem-estar social; atacaram frontalmente a classe trabalhadora ao acelerar o
desmantelamento do próprio trabalho e, consequentemente, estimular ideologias
políticas tóxicas; reduziram o Estado à função de aplicador do monopólio da
violência; criminalizaram e esvaziaram a representatividade política; centralizaram
as principais decisões políticas em órgãos não-eleitos, reduzindo a efetividade
e o valor da democracia na psicologia da sociedade; criminalizaram a pobreza e
a diversidade; reforçaram cartéis e a formação de monopólios nas atividades produtivas...
Poderíamos
elencar por páginas e mais páginas as consequências nefastas desta
contrarrevolução classista coordenada globalmente. Mas vamos nos concentrar no
aprofundamento radical da desigualdade econômica e em seu efeito na psiqué de
nossa era. Não é a toa que a palavra distopia, há meros cinco anos, uma completa desconhecida, se proliferou no vocabulário dessa segunda década do século XXI: as elites que, durante a
Guerra Fria, articularam ideologicamente a utopia liberal de ascensão social
por meio da ideologia meritocrática, hoje assumem abertamente que, dentro deste
sistema, o mundo é pequeno demais para todos nós. Entre mudar o sistema e
reduzir a quantidade de gente no mundo, elas optam claramente pela segunda
alternativa. E essa tática de extermínio acontece por meio da cobrança da
injustificada mas sagrada dívida dos pobres com os ricos, tanto na esfera
individual quanto na geopolítica.
Por que a Grécia
do Syriza foi pisoteada e humilhada pela Troika (Banco Central Europeu,
Comissão Europeia e FMI) ao tentar, timidamente, renegociar sua dívida
pública em 2015? Por uma questão puramente ideológica. O liberal John Maynard Keynes deve
ter se revirado no túmulo ao ver sua filosofia econômica rotulada de
“extremista” quando levada a Bruxelas pelo então chefe das Finanças gregas, o já
citado Yanis Varoufakis. No livro que lançou recentemente, Adults in The Room, Varoufakis conta uma história reveladora do
compromisso ideológico das elites contemporâneas.
Cansado, com dor
de cabeça, o ministro fez uma pausa pro café, depois de argumentar por cinco
horas com os credores que os bancos públicos gregos deveriam manter o controle
sobre a emissão de títulos da dívida soberana – função que a Troika queria transferir para Luxemburgo, um
paraíso fiscal –; que a força de trabalho pública não poderia ser cortada em
dois terços; e que o setor produtivo não poderia se converter num duto de
capital para o exterior por meio de uma política desenfreada de privatizações.
Quem o acompanhou para fora da sala foi o outro lado moderado da negociação,
Christine Lagarde.
Em um atentado
sincericida, a diretora-geral do FMI confessou que Varoufakis tinha razão: o
receituário da Troika carecia de racionalidade econômica, afundaria a Grécia em
recessão e inviabilizaria qualquer restruturação econômica, enterrando a
possibilidade de Atenas quitar sua dívida externa. Mas que o capital político
investido naquele receituário irracional era alto demais para que qualquer um
na sala recuasse. Foi quando o ministro grego se deu conta de que ele talvez
fosse o primeiro devedor da história a tentar pagar uma dívida a um credor que
não queria receber. O que estava em jogo era a manutenção da estrutura de
poder, por mais irracional que fosse. Estava em jogo a sinalização de Berlim a
Paris de que não haveria espaço para ideias minimamente emancipatórias em cabeças portuguesas, irlandesas
e espanholas. Que o cartel que formou a união monetária manteria sua forma de
cartel e não cederia a uma aventura democrática (VAROUFAKIS, 2017:28-30).
Essa historinha
ilustra como as oligarquias, frente a uma crise sistêmica sem perspectiva de
fim, rifaram a própria lógica em nome de sua própria sustentação. Há prova
maior de que o mercado e a mão divina do Adam Smith são um sistema de crença? Como
disse um amigo economista de cerveja em riste, dificilmente os
historiadores do futuro chamarão de “capitalismo” isso que a vivemos hoje. Isso
aqui não é mais capitalismo porque carece dos preceitos ideológicos básicos
daquele finado sistema econômico: mito da ascensão social, mercado
auto-regulado, venda do trabalho em troca de mais-valia, centralidade econômica
do setor produtivo... Tudo isso evaporou.
A ascensão
social só acontece (moderadamente) entre classes médias. De um certo patamar
para cima ou para baixo, a sociedade é estamental, da Arábia Saudita aos Estados Unidos. O mercado é mais dependente do que nunca do Estado que, no pós-2008,
salvou o setor financeiro em detrimento do produtivo e, consequentemente, da
população. O trabalho é cada vez menos vendável, não apenas porque a
automação já substituiu a maior parte da base braçal e ameaça o setor
secundário, mas porque não há mais burguesia exploradora: com a
pulverização das companhias em sociedades anônimas, até o CEO é um funcionário.
Logo, não existe mais possibilidade de expropriação dos meios de produção. A
produção não é nem proprietária nem central na geração de lucro do sistema. A
ideia de comum ganhou penetração na sociedade, mas apenas entre as elites
econômicas. As S/As são propriedades compartilhadas dos meios de produção, que
ironia.
Necroeconomia: inempregáveis crônicos como lenha para
a fogueira do capital
Ou seja, o
inimigo já percebeu que estamos no pós-capitalismo. E está determinado a
ressuscitar patamares de desigualdade anteriores ao primeiro sistema de
organização econômica global a permitir o sonho da ascensão social. Com uma
diferença: desta vez, a base da pirâmide não tem função produtiva. Pelo
contrário, para que o sistema se autorreproduza em sua lógica cumulativa, para
que o lucro privado continue a guiar o desenvolvimento humano em seu desprezo
profundo pela finitude dos recursos naturais, é necessário reinventar a
existência econômica – e física – da maior parte da população. Talvez, nos
estertores do capitalismo, estejamos entrando na era da necroeconomia,
parodiando a necropolítica de Achille Mbembe.
Alguns indícios
da criatividade perversa das oligarquias para a sociedade pós-trabalho já podem
ser vislumbrados mundo afora. Um dos mecanismos de reciclagem econômica de quem
não cabe mais em nenhum ciclo produtivo é o complexo industrial prisional – que
a jurista negra estadunidense Michelle Alexander chama inteligentemente de
“nova Jim Crow”, em referência à lei de segregação racial que deu sobrevida à
escravidão no sul dos Estados Unidos.
Depois de
comentar o lucro recorde em 2008 da Corrections Corporation of America (CCA), a
principal administradora privada de presídios no mundo, Alexander lista os
setores que se beneficiam diretamente da explosão da população carcerária:
“Além das empresas privadas de administração carcerária, uma ampla gama de
exploradores do sistema prisional ficará órfã se o encarceramento em massa
recuar, incluindo as empresas de telefonia que extorquem as famílias dos
detentos cobrando presos exorbitantes para que se comuniquem com seus entes
queridos; fabricantes de armas que vendem rifles e pistolas não-letais para
carcereiros e policiais; prestadoras de serviços de saúde contratadas a valores
superfaturados pelo Estado para fornecer (parca) assistência médica aos presos;
o exército americano, que explora a força de trabalho dos detentos na fabricação
de equipamento militar para os soldados no Iraque; corporações que utilizam o
trabalho dos presos para evitar pagar salários dignos; e os políticos,
advogados e banqueiros que negociam as construções de novos presídios em
comunidades rurais predominantemente brancas – em acordos que prometem muito
mais do que entregam. Todos esses interesses políticos e corporativos apostam
todas as fichas na ampliação do encarceramento em massa” (ALEXANDER, 2010:231),
como forma de reciclagem daqueles que são economicamente inviáveis na atual
etapa de desenvolvimento do capitalismo financeirizado.
Ou seja, não
falamos só da volta da escravidão capitalista, a primeira modalidade de
servidão a reduzir corpos humanos a commodities. Falamos de uma evolução
conceitual da coisificação: se na era do metalismo, o corpo humano tinha um
peso em ouro (era lastreado em um objeto), na era da desmaterialização completa
da economia, o corpo se torna capital especulativo. A escravidão contemporânea
é baseada na coisificação sem coisa – o que deixa o ser humano mais descartável
do que nunca. A expectativa de encarceramento e, portanto, de geração de lucro
sobre a massa inempregável, economicamente morta, impacta as projeções das
empresas. Isso significa que, para que a promessa da geração de valor sobre o
corpo humano se concretize, é preciso projetar um prazo para que este corpo
torne-se produtivo, uma data de expiração no título de ganho futuro com o
trabalho escravo do preso. Em outras palavras, o lucro de hoje depende de metas
de quando e quanto se prenderá no futuro.
Isso obriga as
empresas envolvidas na especulação sobre o encarceramento em massa a se engajar
na caça ativa do lastro humano para os subprimes
da nova escravidão. Não é a toa que a Califórnia tornou-se a Meca da privatização
carcerária: está colada no safári dos futuros presos. Cresce de forma alarmante
o número de pessoas que cumprem pena de até cinco anos em regime fechado por
reincidência no crime de tentativa de imigração ilegal para os Estados Unidos.
Latino-americanos recuperados pela polícia de fronteira ou por milícias
(privadas ou comunitárias, formadas por justiceiros) são entregues ao
Judiciário, que deporta os primários e coloca a barganha sobre a mesa dos
reincidentes: cumprir pena reduzida ou encarar, em solo estrangeiro com
advogado fornecido pelo inimigo, o peso completo da lei, que pode significar
até 30 anos de reclusão. Claro que a maioria aceita cumprir a pena menor e,
ironicamente, fazer exatamente o que sonhava fazer ao tentar a travessia:
trabalhar. Só que por um salário abaixo do preço de mercado e que, ao invés de
ser usado para construir um futuro melhor, servirá para financiar os custos de
sua própria deportação. Transformar mão-de-obra imigrante em capital escravo
especulativo. Esse é novo American Way de enfrentar a crise migratória.
Outra forma de
reciclagem do inempregável crônico (o termo “precariado”, ainda que útil para
definir quem não cabe mais nos mercados formais de trabalho, pode vir a soar
eufemista caso se concretizem os planos do sistema para a base da pirâmide) é a
indústria da morte, que pode ser um bom guarda-chuva para abrigar os setores
químico-farmacêutico e armamentista. O funcionamento dessa última dispensa
grandes explicações. Basta olhar para os brinquedos voadores de Barack Obama
explodindo um casamento no Paquistão
ou um vilarejo na Somália;
para a relação do Pentágono com a empresa de mercenários Blackwater
(rebranded Academi por excesso de
crimes de guerra) que não se abala por mais escabrosas que sejam as denúncias
de abuso de direitos humanos por seus funcionários; para a impressionante curvaascendente no valor acionário da fabricante de armamentos Lockheed Martin
desde o início da chamada “Guerra ao Terror”; para a reclassificação
mercadológica dos equipamentos de controle de massas como as bombas de gás
lacrimogêneo e as balas de borracha de “armas de baixa letalidade” para
“não-letais”; ou
para a curiosa tolerância ocidental com a Arábia Saudita, cujas diferenças para
o autoproclamado Estado Islâmico não vão muito além da vestimenta tradicional,
do fato de ter conseguido se constituir como estado e de ter se tornado o
principal comprador de armas do mercado internacional.
Em alguns
momentos da história, farmacêutica-química-bélica nem precisaram do mesmo
guarda-chuva, eram uma coisa só. A gente esquece que a Monsanto foi a
fabricante do agente laranja, arma química de produção baratíssima, que
transformou o sudeste asiático num showroomde graves deformações genéticas.
Ou que, em 1942, o CEO da Monsanto Charles Allen Thomas chefiou o Manhattan
Project, pesquisa do Pentágono que culminou em Hiroshima e Nagasaki.
Não é a toa que, no mundo da guerra permanente, quando a indústria bélica perde
qualquer amarra ética ou política formal, quando recomeçam os testes com armas
químicas em Estados devastados como Síria e Líbia, a Monsanto está em vias de
ser comprada pela gigante farmacêutica alemã Bayer. Uma empresa que pesquisa
curas compra outra que gera doenças – e o Cade preocupado com o risco à
concorrência.
Ou seja, o que se prepara para o próximo capítulo da guerra de classes é um
recorte financeiro para determinar quem tem ou não o direito de viver. Basta
lançar a doença e determinar o preço da cura.
Fazer as pazes com a luta de classes e enfrentar a
guerra declarada pelas elites
Talvez esses
acontecimentos sejam indícios de um movimento tectônico na história da luta de
classes e, consequentemente, da desigualdade. Retomando de forma esquemática,
os fatores macroscópicos que permitem essa leitura são:
- A reação classista
das democracias liberais à crise de 2008, quando governos de plataforma
humanista, liberal e social-democrata optaram por rifar o povo e salvar o poder
financeiro por meio da auto-intitulada austeridade fiscal – que de austera não
tem nada, já que saca recursos de setores com potencial de desenvolvimento
econômico e social para atirá-los no setor financeiro, o menos seguro de toda a
economia;
- O consequente descrédito da democracia representativa, seu
enfraquecimento deliberado e derradeiro sequestro pelas elites econômicas;
- O
inteligente apoio dessas elites a plataformas anti-humanas, anti-políticas, abertamente
fascistas, que encontram bodes expiatórios de todos os males do capital entre as
parcelas mais vulneráveis da população e prometem mudar tudo para deixar tudo
igual;
- A ressignificação ideológica da escravidão e do genocídio como
valores – repaginados, lógico, com nomes mais market-friendly.
Em suma, as elites vêm com tudo para tentar vencer
a guerra encolhendo a população planetária para não ter que encolher o ritmo de
sua geração de lucro.
Uma política
incapaz de enfrentar a ideia de que o lucro deva ser o motor da atividade
humana é uma política intrinsecamente tóxica, incapaz de enfrentar seu próprio
sequestro pelo poder financeiro. O inimigo está em guerra e a arma dessa guerra
é o aprofundamento genocida da desigualdade. E nós? Estamos em guerra? Ou vamos
deixar com eles o monopólio da violência?
Uma de nossas principais missões em um
mundo que se tornou irracional, no qual as elites admitem a inviabilidade do
sistema com determinação sanguinária, é demonstrar com todas as forças a
irracionalidade desse sistema e lutar para implodir os templos em que se cultua
o Deus-Mercado, como dizia o saudoso sonhador Eduardo Galeano. No plano das
instituições internacionais, esses templos são claros: paraísos fiscais e os
tribunais de arbitragem, respectivos mecanismos financeiro e jurídico da
financeirização.
Se algum dia voltarmos ao governo, temos de
estar preparados para responder em que medida toda e qualquer ação que tomemos
contribuirá para reduzir desigualdades de maneira radical e interseccional. Tudo
que fizermos, por menor que seja, terá de enfrentar, ao mesmo tempo e sem
concessões, o racismo, o patriarcado, a patologização das identidades de
gênero, o genocídio negro, periférico e indígena, a intolerância com as
religiões de matriz africana, o colapso ambiental, a deseducação política, a
concentração de renda, a financeirização do setor produtivo. Isso significa,
desde já, que um novo governo de esquerda terá de ter uma abordagem holística
sobre os problemas sociais, terá de enfrentar radicalmente a fragmentação das
esferas decisórias e a abordagem compartimentada sobre os problemas
estruturais.
Será necessário que cada ação tenha eco em
nosso horizonte utópico. É preciso que consigamos apontar com precisão como cada
mínimo movimento político nosso nos aproximará do nosso objetivo de eliminar
todas as desigualdades promovendo toda a diversidade. E é óbvio que, hoje, esta
é uma colocação utópica. Mas é preciso que comecemos a expressá-la para que, aos
ouvidos das próximas gerações, ela soe mais realista.
Já tivemos abordagens holísticas, que nos
aproximaram deste ideal interseccional. Em certa medida, foi o que fez o Bolsa
Família, um programa sócio-econômico-educacional claramente feminista. Só não
poderíamos chamá-lo de plenamente interseccional porque o programa contribuiu
para a financeirização ao inventar novo campo de exploração para os bancos, que
haviam visto encolher sua caderneta corporativa, conforme o setor produtivo
incorporava as finanças como atividade endógena. A financeirização dos pobres
me parece ter garantido, na cauda longa, a lucratividade de um setor
parasitário de multi-bilionários que tendia a encolher.
Enfrentar problemas de maneira holística foi
o que fez o BNDES nos governos do PT, ao transformar o Estado em agente
empreendedor, disposto a assumir, em nome do desenvolvimento nacional, riscos que
travariam investimentos já nos gráficos de projeção de lucro do setor privado.
Quer dizer, a década progressista nos aproximou do horizonte utópico. Mas, sem
crítica construtiva, mas honesta e radical, ele se afastará de novo.
Agora que o inimigo declarou guerra de
classe, deu até golpe, a gente precisa aceitar essa premissa marxista da luta
de classes e incorporar, à la Angela Davis, todos os exércitos excluídos às
nossas trincheiras. Precisamos entender que ganha-ganha não existe mais.
O presidente Lula sempre fala,
orgulhosamente, que empresário nunca ganhou tanto dinheiro quanto no governo
dele. É verdade. Mas é uma verdade triste, pois, se a distância entre os
extremos da pirâmide não encolheu, é difícil determinar qual foi o real nível
de distribuição de renda.
Precisamos discutir qual nível de
desigualdade estamos dispostos a tolerar. Por mim, implodiria a pirâmide. Acho
que nenhuma desigualdade de berço é aceitável. Nascer inferior a outro ser
humano é imoral e não tem nada a ver com vontade divina. A não ser que a gente aceite
que Deus é o mercado, que o racismo é natural, que as mulheres são inferiores,
que as pessoas LGBT são doentes, que os povos originários são selvagens. A
única maneira de tolerar algum nível de desigualdade inata é acreditar nas duas
faces da moral neoliberal: darwinismo social e meritocracia. Logo, se a
eliminação das desigualdades desaparece de nosso horizonte utópico, o discurso
de redução das desigualdades é filosoficamente insustentável.
No duro ciclo que se anuncia, a capacidade
de pensar em termos utópicos e interseccionais será determinante para a
sobrevivência da esquerda enquanto campo político. Em termos de imaginação política,
precisaremos ir muito além do possível.
Talvez seja o caso de criar não a
independência financeira, mas a independência do dinheiro como mecanismo de
sobrevivência. A independência da estrutura bancária. A independência do lastro
a uma moeda sem lastro. E talvez isso passe por lastrear o consumo ao próprio
consumo e não a uma entidade opressora e exploradora externa. Um novo sistema
econômico interno vai ter de ser criado. Ou sistemas econômicos independentes,
restritos às comunidades, que se comuniquem aos sistemas econômicos vizinhos em
uma segunda esfera. Talvez seja necessário gerar minilastros entre sistemas
econômicos, de forma que eles se balanceiem de maneira independente da exploração... Externamente, precisamos reconstruir os laços e prestígio internacional para
denunciar os paraísos fiscais e os tribunais de arbitragem. Pra evitar o caos
ambiental, a ascensão fascista, o crescimento de ideologias apocalípticas, precisaremos
estar dispostos a atacar o coração do sistema.
O primeiro passo é dessacralizar o sistema,
expor a falácia do mito fundador smithiano e derrubar o véu da mão invisível do
mercado. Não há mão invisível porque o mercado só existe enquanto crença. Temos
que lembrar que a economia é uma ciência humana. Que o dinheiro é uma invenção
nossa, e talvez seja tecnologia obsoleta.
Para começar esse processo, é preciso trocar
a moeda da inclusão social. O custo da inclusão tem que ser o empobrecimento
dos ricos; o “desempoderamento” dos brancos; dos homens, dos héteros. A
democracia tem que ser paga em privilégio, não em dinheiro. Enquanto a
democracia for negociada a dinheiro, ela é uma finançocracia. Para juntar essas
duas palavras gregas - demos (povo) e kratos (poder) -, vamos ter que aprender
a expropriar privilégios. E, acima de tudo, nos permitir sonhar a construção do
impossível.
Notas
Bibliografia
ALEXANDER, Michelle. The New Jim Crow: Mass Incarceration in the
Age of Colorblindness. Nova York. The New Press, 2010.
DAVIS, Angela Y. Freedom is a constant
struggle: Ferguson, Palestine and the foundations of a movement. Chicago.
Haymarket Books, 2016.
GRAEBER, David. Debt, the first 5000
years. Nova York. Melville House Publishing, 2011.
HEDGES, Chris. American Fascists: The
Christian right and the war on America. Nova York. Free Press, 2006.
LAPAVITSAS, Costas. Profiting without
producing. Londres. Verso, 2013.
Panteras Negras: estratégia e revolução.
Casa da Resistência, 2016. Disponível em: https://gatopretocomunicacao.files.wordpress.com/2016/12/caderno-completo.pdf
SMITH, Adam. A riqueza das nações.
São Paulo. Editora Nova Cultural Ltda, 1996.
VAROUFAKIS, Yanis. Adults in the room: My battle with Europe's
deep establishment. Londres. Random House, 2017.
ZIZEK!. Direção: Astra Taylor, Produção: Lawrence Konner. Estados
Unidos/Canadá: Hidden Driver Productions, 2005.