23 novembro, 2016

Um negro chamado ninguém

Não deixo de ser negro ao falar de temas que não tocam diretamente o negro. Só deixo de ser ouvido.


Primeiramente, além do #ForaTemer, meu lugar de fala: sou negro, sou de esquerda, homem heterossexual (até onde eu sei), de classe média, trabalhador da notícia (para me diferenciar do que se convencionou chamar de jornalista), mestre em literatura, descendente de escravos e nordestinos, vítima de racismo direto e institucional, culturalmente brasileiro, politicamente apátrida e antinacionalista. E escrevo para exigir o direito de não-ser.

Não falo da obrigação de não-ser imposta verticalmente àqueles cuja voz a sociedade descarta, mas do direito de me manifestar fora de meu lugar de fala. O nome do meu site é a reivindicação populista de um lugar de fala, é uma leitura radical da formação afrodescendente de minhas influências. "Afroências" é um clamor por aceitação, é a contradição primordial, fundadora, deste espaço. É o fóssil de minha tentativa de pertencer a um lugar de fala, um lugar negro, que me colocasse ao lado daqueles que tenho como ídolos.

Ser negro é não ter lugar nem fala; não por opção, mas por imposição. Nos impuseram o não-lugar da cultura, arrancada pela escravidão; o não-lugar dos nomes vilipendiados; o não-lugar dos corpos dilacerados; o não-lugar do desemprego, da ausência de direitos. É apenas normal que reivindiquemos um "lugar". O problema é que reivindicamos um salvo-conduto para os espaços tradicionalmente ocupados pelo branco liberal. Eu quero implodir o próprio lugar e sobrar só com a fala - desta vez, por opção e não por imposição.

Isso significa destruir os espelhos, a representatividade, a própria individualidade e exigir o direito de ser ninguém, de ser um problema real para um sistema cuja torre de opressão é fundada na construção do indivíduo e de seu direito inalienável de propriedade. Não quero propriedade de nada, nem do meu próprio nome. Quero ser um pirata de mim mesmo, um ninguém que gera pensamentos. Se nosso sistema econômico foi fundado na escravidão, quero a abolição não só da escravidão, mas da própria lógica que a possibilita. Ou seja, quero revogar a ideia de propriedade, seja de uma pessoa, seja de um discurso. Exigir um "lugar de fala" significa exigir a propriedade sobre um discurso. Quero que o discurso não pertença a ninguém. Quero o direito de ser ninguém.
"Ponha-se no seu lugar" é "reivindico meu lugar de fala" conjugado no imperativo.

Essa posição é perigosa: é muito mais fácil se legitimar a partir de seu lugar de fala. Todo mundo conta com a propriedade de um lugar. Se o branco de direita quer nossa volta à senzala, o branco de esquerda espera que nosso lugar legitime a fala dele. Nos dois casos, "ponha-se no seu lugar" é "reivindico meu lugar de fala" conjugado no imperativo.

Quero falar sem lugar, quero falar sem gueto e quero cota não de 10%, mas de 100% no lugar de fala do branco. Quero que os homossexuais tenham cota de 100% no lugar de fala dos heterossexuais. Quero que as mulheres tenham cota de 100% no lugar de fala dos homens. Quero que o lugar de fala se exploda e ceda espaço ao direito verdadeiramente democrático de falarmos de qualquer lugar, de qualquer assunto - mesmo daquele que pertence à esfera de quem nos oprime.  Nós, oprimidos sob diversos prismas, só seremos verdadeiramente perigosos quando enxergarmos primeiro a opressão e depois o prisma. Do contrário, vamos virar a black face do white power, como foi Barack Obama. Porque, no fundo, quando se diz "lugar de fala", a palavra-chave é "lugar" e não "fala".

Por isso, nossa arma é falar de tudo, ocupar todos os lugares e não nos restringir ao que se espera de nós. Não quero denunciar só o racismo, muito menos numa perspectiva individual. Não quero falar que apanhei da polícia pela primeira vez aos dez anos nem dizer que, tantos idiomas e diplomas depois, ainda me mandam subir por elevador de serviço. Quero discutir política europeia, sim. Quero discutir filosofia clássica, sim. Quero discutir macroeconomia, sim. Sim, quero discutir tudo sem que o filtro seja esse nada que é tudo que cabe em "meu lugar de fala". Não deixo de ser negro ao falar de temas que não tocam diretamente o negro. Só deixo de ser ouvido. Mas prefiro a surdez dos opressores ao sectarismo dos oprimidos.

PS.: Esse texto é contraditório em si. Ele só possibilita criticar o lugar de fala porque reivindica o lugar de fala. E eu tenho certeza que ele vai funcionar não por causa da crítica radical, mas por causa da reivindicação do lugar de fala. Todo mundo vai ler o texto e entender o manifesto porque sou um negro negando meu lugar de fala.
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